O Estado de S. Paulo
Disparates sem sentido do presidente fazem parte de seu projeto de matar para mandar
“Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo
armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: ‘Ah,
tem que comprar é feijão’. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o
saco de quem quer comprar”, disse o presidente da República, em 27 de agosto,
para fãs que se reúnem diariamente à espera da ocasião propícia para bajulá-lo.
É comum atribuir suas patacoadas sem nexo a
impulsos de insanidade. Muita gente boa e lúcida propõe convocar uma junta de
psiquiatras para decretar a interdição de Jair Bolsonaro. Isso condiz a lógica,
porque, ao longo de sua vida de mau militar e parlamentar em ócio permanente,
ele nada produziu de útil.
De farda, resumiu sua passagem pela caserna
a reclamar de baixo soldo. Sob acusação de terrorismo por ter planejado
atentados à bomba em quartéis e numa adutora do Guandu, como expôs o repórter
Luiz Maklouf Carvalho no primoroso livro O Cadete e o Capitão, foi convidado a
cair fora da vida militar, que resumiu numa frase dita em Porto Alegre em 2017:
“Minha especialidade é matar, não é curar ninguém”.
Em 30 anos de política, como vereador no Rio e deputado federal, sua improdutividade parlamentar facilitou a narrativa com a qual venceu a disputa pela Presidência em 2018: a de nunca ter sido um político de verdade. De sua passagem pela Câmara deixou duas obras: uma é o projeto da “pílula do câncer”, em parceria com o médico e sindicalista do PT Arlindo Chinaglia, sancionada pela petista Dilma Rousseff, outra personagem do folclore do absurdo infeliz. A segunda, o voto pelo impeachment da ex-guerrilheira, em que saudou como herói o torturador e assassino Brilhante Ustra, acusado de tê-la torturado. Em ambos os casos, elegeu a covardia e uma aparente contradição. Neste caso, será útil lembrar que cumpriu o que sempre quis na vida pública: amealhar patrimônio pessoal, garantir a própria impunidade e deixar uma polpuda herança para o pagador de impostos sustentar a própria prole. Os “rolos” imobiliários do filho senador e do adolescente festeiro, de um descaramento atroz para pagadores das contas da famiglia, são evidências que talvez Nelson Rodrigues preferisse definir como “atordoantes”, em vez de “ululantes”.
A provocação à la Maria Antonieta do “não
tem feijão, compre fuzil” é a versão armada da dicotomia que engendrou no
início da pandemia de covid-19, ao opor à mortandade pelo novo coronavírus o
primado da economia sobre a vida. Em março de 2020, expondo-se sem máscara na
periferia de Brasília, ele disparava sua artilharia contra a ciência: “Vamos
enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Tomos nós iremos morrer um dia”.
Em fevereiro de 2021, previu o que mais parecia um desejo oculto de quem cultua
a morte: “Vamos conviver com o vírus a vida toda”. Sobre mais de meio milhão de
cadáveres empilhados à espera de sepultamento saiu-se com algo ainda mais
desumano: “Não sou coveiro”. E era.
Por mais severa que a realidade seja, ao
superar sua retórica fúnebre, Sua Insolência a tem enfrentado com a coerência
do “contra os fatos há seus argumentos”. Sua fidelidade aos caçadores,
garimpeiros ilegais, desmatadores de biomas e outros aliados não cede à
transformação da pitoresca hinterland brasileira numa encenação real de um
longínquo Oeste sem lei, como no começo da semana em Araçatuba, num assalto a
mãos armadíssimas com três vítimas de morte. Nem à apreensão de dez fuzis
escondidos no painel, no banco traseiro e nos pneus de estepe de um carro na
Via Dutra, em Guarulhos. A realidade é apenas uma “idiotice” a mais na
coerência de quem já foi contra o voto impresso fraudado. Em 1993, o então
deputado federal de primeiro mandato Jair Bolsonaro (à época no PPRRJ)
participou de um evento no Clube Militar, no Rio de Janeiro, para definir
estratégias para a “salvação do Brasil”. Na ocasião, o capitão da reserva
defendeu a informatização da apuração dos votos. O oposto do que prega agora
No texto O projeto de Bolsonaro é um
projeto de família, no Globo, Carlos Góes citou Filipe Campante, professor da
Universidade Johns Hopkins, ao explicar, com realismo, as contradições entre os
desejos do eleitor e as plataformas do chefão de nossa direita populista
estupefaciente. “Tanto no caso do distanciamento social quanto no caso do longo
atraso na compra das vacinas, o presidente teve posturas que se afastaram do
desejo da maioria da população. Essas posturas eram, contudo, populares na sua
base de apoiadores mais radicais. Embora reduza seu prestígio e sua própria
probabilidade de reeleição, essas sinalizações tornam sua base mais fiel e
podem garantir extração de renda futura para seus próprios filhos. Não no topo
da pirâmide política, mas no baixo clero – espaço que a família ocupou por
muito tempo. Mais do que um projeto de poder ou um projeto de país, o objetivo
racionalizável parece ser usar o poder e o país para um projeto de família: uma
nepocracia.”
Oscar Wilde constatou que “a coerência é a
virtude dos imbecis”. Talvez mais do que louco, Bolsonaro seja coerente com
seus planos. Portanto, basta! Xô! Fora!
*Jornalista, poeta e escritor
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