quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Governo se mobiliza contra um manifesto de conciliação

Valor Econômico

O presidente e seus aliados criam um clima corrosivo também para os negócios

Não foi o primeiro e, se depender do presidente Jair Bolsonaro, não será o último manifesto por paz na República e atenção às regras democráticas o que duas das mais poderosas organizações de empresários do país, a Federação Brasileira de Bancos e a Fiesp, prepararam. A diferença em relação aos outros foi que ele não veio a público - embora seu conteúdo principal tenha sido amplamente divulgado.

O governo federal interveio para isso. O ministro Paulo Guedes disse que alguém lhe tinha dito que não se tratava da defesa da democracia, mas de um ataque da Febraban ao governo. As direções do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal entraram em ação e ameaçaram deixar a associação. O convite final ao silêncio veio do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que solicitou a Paulo Skaf, presidente da Fiesp e ex-aliado de Bolsonaro, que postergasse o documento para depois do 7 de Setembro. Não houve iniciativa semelhante do deputado em relação ao presidente da República, que incentivou a convocação de atos públicos nesta data cujas palavras de ordem são ataques ao Supremo Tribunal Federal.

O contraste entre o comedimento de um lado e o radicalismo de outro merece atenção. Quem acredita que a associação dos bancos é incendiária comete o mesmo erro descomunal de quem acredita que Jair Bolsonaro é um liberal. O manifesto que se engendrava era bem mais comedido do que seus antecessores e, em essência, assentava-se no pressuposto de que a harmonia entre os Poderes está inscrita na Constituição e que por isso “é primordial que todos os ocupantes de cargos relevantes da República sigam o que a Constituição nos impõem”. Em seguida, pregava “serenidade, diálogo, pacificação política e estabilidade institucional”.

Enquanto os organizadores do manifesto faziam malabarismos para não colocar em suas frases o sujeito oculto - aquele que não anda fazendo o que manda a Constituição - e igualava as condutas dos demais Poderes, que não estão provocando balbúrdia, o presidente dizia no sábado em Goiânia que não deseja rupturas, “mas tudo tem limite” e que não aceitará uma derrota nas eleições de 2022. Deu três chances sobre seu futuro: “Estar preso, morto ou a vitória”. Bolsonaro afirmou, a mais de um ano da votação, que pacificamente, pelas normas do jogo democrático, não entregará o poder.

O presidente e as correntes bolsonaristas que preparam atos no 7 de setembro graduaram as palavras de ordem e agora dão prioridade à “liberdade de expressão”, embora nas convocações por redes sociais abundem críticas à “ditadura da toga”, ao “ativismo político” do STF e defesas do voto impresso. Organizações empresariais podem, e em ambientes polarizados como agora, devem, indicar os rumos que entendam melhor para o país, especialmente se o que estiver em questão for o regime democrático - como é o caso.

Em todas as pesquisas de opinião, os empresários formam o segmento mais fiel e o que melhor avalia o desempenho de Bolsonaro e seu governo. Esse apoio também está encolhendo, mas de forma menos acentuada. O raro protagonismo da Febraban em uma manifestação política é, em si, um sintoma de descontentamento que se dissemina entre as cúpulas empresariais. Os êmulos do presidente, para não incomodar o chefe, não tentam mudar as causas desse descontentamento, e sim apenas inibir sua expressão escrita. Mas o estrago já está feito. Fiesp e Febraban não saem ilesas do episódio. Bastou um conselho do mensageiro do poder para adiarem a expressão legítima de suas posições.

O presidente e seus aliados criam um clima corrosivo para os negócios e para largas áreas da vida social e cultural: produzem desastres em série na cultura, no meio ambiente, na saúde, na educação etc. Na economia só o ministro da pasta acredita que as coisas vão bem. A ideia de que o sufoco fiscal cedera foi passageira e foi seguida por várias outras que buscam furar o teto de gastos. A desconfiança sobre o futuro das contas públicas impede há meses uma queda significativa do dólar, cuja megadesvalorização transformou um bem-vindo aumento das commodities em um motor da inflação, que beira os 9%.

O risco Bolsonaro tornou-se sinônimo do risco Brasil. O Banco Central está subindo rapidamente os juros e contratando um crescimento anêmico - mais um - em 2022, ano de eleições. Bolsonaro cria condições desfavoráveis para si próprio nas urnas - e diz, confiante, que derrotado não será.

A paz que dá medo ao governo

O Estado de S. Paulo

O clamor por responsabilidade e harmonia institucional é visto pelo Planalto como radical oposição aos planos do bolsonarismo

Os tempos atuais são tão esquisitos que um manifesto pedindo a pacificação e a harmonia entre os Três Poderes foi encarado como ato de oposição ao presidente da República. Aliado do governo federal, o presidente da Câmara, Arthur Lira, pediu ao presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, que adiasse a divulgação do documento para depois do 7 de Setembro.

Com mais de 200 assinaturas, o manifesto nasceu da preocupação da Federação Nacional dos Bancos (Febraban) com a situação do País. A Fiesp adiou sua divulgação, mas outras vozes se levantaram.

Na segunda-feira passada, entidades do agronegócio manifestaram-se em defesa do Estado Democrático de Direito. “As entidades (...) tornam pública sua preocupação com os atuais desafios à harmonia político-institucional e, como consequência, à estabilidade econômica e social em nosso País. (...) Em nome de nossos setores, cumprimos o dever de nos juntar a muitas outras vozes responsáveis, em chamamento a que nossas lideranças se mostrem à altura do Brasil e de sua história”, diz a nota.

“O voto de confiança foi dado, e a confiança não foi retribuída”, disse Marcello Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), uma das entidades que endossaram o manifesto. “Talvez a gente tenha sido condescendente por um tempo longo demais. A omissão não se admite em tempos de pressão como agora”, disse Brito, em entrevista na TV Cultura.

As entidades do agronegócio disseram o óbvio. “O desenvolvimento econômico e social do Brasil, para ser efetivo e sustentável, requer paz e tranquilidade”, lê-se na nota. Infelizmente, no entanto, expressar o óbvio tornou-se hoje ato de enfrentamento a Jair Bolsonaro, tal é o seu comportamento conflituoso e irresponsável.

O óbvio também foi dito por centrais sindicais. “São quase 15 milhões de desempregados, seis milhões de desalentados, outros seis milhões de inativos que precisam de um emprego e mais sete milhões ocupados de forma precária. Inflação alta, carestia e fuga de investimentos. (...) O próprio presidente se encarrega de pessoalmente gerar confrontos diários, criando um clima de instabilidade e uma imagem de descrédito do Brasil”, diz nota conjunta das centrais.

Tal é a disfuncionalidade do Executivo federal – não cabe esperar nada de Jair Bolsonaro –, que o prognóstico também se tornou consenso. “É preciso que o Legislativo e o Judiciário em todos os níveis, os governadores e prefeitos tomem à frente de decisões importantes em nome do Estado Democrático de Direito, não apenas para conter os arroubos autoritários do presidente, mas também que disponham sobre questões urgentes como geração de empregos decentes, a necessidade de programas sociais e o enfrentamento correto da crise sanitária”, disseram as centrais sindicais.

Ainda que em diferentes linguagens, os manifestos expressam a mesma preocupação. Há uma grave crise política e institucional, que vem causando profundos prejuízos sociais e econômicos ao País. E mesmo que o Palácio do Planalto não seja citado, a simples menção à crise remete diretamente a Jair Bolsonaro. Todos sabem a causa da crise.

Habitualmente, a desestabilização e a desarmonia são objetivos da oposição. Ainda que possa ser criticada, a tática é compreensível. Opositores tentam criar dificuldades para que o governo não seja capaz de implementar suas propostas, das quais a oposição discorda.

Com Jair Bolsonaro na Presidência da República, a situação é a inversa. O governo tenta criar constantemente arruaças, conflitos e instabilidades. Bolsonaristas ameaçam dar um golpe de Estado. Em contraste, todo o restante – desde entidades do agronegócio e instituições financeiras até centrais sindicais – pede, em inusitado uníssono, paz e tranquilidade.

A confirmar o despautério, o clamor por responsabilidade e harmonia institucional é visto pelo Palácio do Planalto como radical oposição aos planos do bolsonarismo. O alerta a Hamlet sobre a podridão na Dinamarca teria aqui tons de inapropriado eufemismo.

Eleições e fake News

O Estado de S. Paulo

A melhor defesa contra a desinformação sempre será a informação qualificada

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passará por seu maior teste em 2022. Esse foi um dos consensos obtidos entre os especialistas recebidos pelo Estado para debater o tema “Eleições e Fake News”.

Segundo o levantamento Manipulação Organizada das Mídias Sociais do Oxford Internet Institute, as milícias digitais, ou seja, atores governamentais ou partidários empenhados na manipulação da opinião pública online, estão se proliferando e se profissionalizando em todo o mundo. Num cenário em que os tradicionais limites à liberdade de expressão – calúnia, injúria e difamação – parecem insuficientes para proteger bens fundamentais, como eleições limpas, é legítima a pressão por mecanismos legais de combate à desinformação. O desafio é reprimi-la sem ferir a liberdade de expressão.

No afã de combater a desinformação, o risco é que o poder público crie mecanismos incompatíveis com a Constituição ou mais especificamente com os princípios norteadores do Marco Civil da Internet: a neutralidade da rede, a liberdade de expressão e a proteção à privacidade. Como disse Carlos Affonso Souza, do ITS Rio, há algumas “armadilhas” para 2022 que precisam ser desarmadas.

O projeto aprovado pelo Senado e em tramitação na Câmara da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, por exemplo, contém várias armadilhas, como a responsabilização das redes por conteúdo veiculado pelos usuários ou a pretensão de que elas atuem como juízes da verdade – validando, no limite, uma censura terceirizada. Com o mesmo açodamento, no Congresso tramita um projeto de Código Eleitoral com 900 artigos para valer já nas próximas eleições, sem que a sociedade tenha tido tempo de assimilar as propostas, muito menos de debatê-las.

Que a liberdade de expressão não é um valor absoluto foi outro consenso entre os participantes do debate. Mas o princípio fundamental a guiar os esforços de legisladores, juízes e mídias é que ela é a regra, e a supressão de conteúdos ou perfis, a exceção. “A liberdade de expressão é um enorme pilar da nossa democracia e sangra toda vez que um conteúdo é retirado”, disse Diogo Rais, do Instituto de Liberdade Digital. “A diferença é quanto ela vai sangrar e se vale a pena esse sangramento.”

Como especificou Diego Gualda, diretor jurídico do Twitter, as ferramentas de moderação não se resumem a deletar conteúdos ou remover perfis. “Elas têm se sofisticado e incluído ferramentas de contextualização e rotulagem.”

Outro princípio é que a autorregulação das mídias deveria ser a regra, e a regulação e a intervenção do Estado, a exceção. Naturalmente, é o Legislativo que define o que é lícito ou ilícito e é o Judiciário que aplica essa definição aos casos concretos. Mas, se ele é a instância definitiva de controle, não significa que deva ser a primeira e única, como sugerem certas propostas legislativas. “As regras da plataforma são como se fossem os primeiros socorros”, sugeriu Affonso Souza, “aqueles que vão prestar o primeiro atendimento.” Em casos de abuso na moderação de conteúdos, o Judiciário sempre pode ser acionado para revisar os procedimentos das mídias.

Em termos de legislação, de um modo geral as melhores propostas são aquelas que vão na direção não tanto do controle de conteúdo – o que pode facilmente degenerar em censura –, mas do combate a comportamentos abusivos. Em 2020, o próprio TSE firmou uma parceria com o Facebook com o objetivo de enfrentar comportamentos inautênticos nas redes, como o uso de perfis falsos e contas automatizadas. A desmonetização de canais sistematicamente empenhados em divulgação de conteúdo enganoso ou ataques a instituições também segue nessa direção.

Mas a melhor defesa contra a desinformação sempre será a informação qualificada. As mídias sociais “têm de trabalhar para reforçar aqueles produtores de conteúdo que fazem bem feito e seguem a técnica jornalística”, disse Manoel Fernandes, da consultoria Bites. “Faço aqui uma defesa intransigente do jornalismo profissional”, concluiu, “esse será o nosso antídoto com relação às fake news.” 

O BC enfim autônomo

O Estado de S. Paulo

Mantendo a autonomia do BC, o STF impede um grave retrocesso da gestão econômica

Defensor do poder de compra das famílias e da ordem financeira, o Banco Central do Brasil (BCB), criado há mais de meio século, tem finalmente sua autonomia assegurada por lei e por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Blindada contra pressões políticas e interferências de ministros e do chefe de governo, a principal autoridade monetária pode com mais segurança trabalhar pela estabilidade de preços, condição da previsibilidade econômica e do crescimento seguro. Por 8 votos a 2, a Corte rejeitou a ação de parlamentares do PT e do PSOL contra a lei aprovada em 10 de fevereiro. Com isso, o Judiciário impediu um grave retrocesso e assegurou mais um passo, tão raro nos últimos tempos, para a inserção do País na modernidade.

Há dez anos, só o Brasil, entre 27 países onde vigorava o sistema de metas de inflação, tinha um banco central sem mandatos fixos para seus diretores. Atrasos são uma das marcas da história da administração monetária no País. O Federal Reserve (Fed), o BC americano, nasceu em 1913, com a missão de combinar estabilidade monetária e emprego. Bancos centrais foram criados em vários países latino-americanos, como Argentina, Colômbia, Chile, Equador e Bolívia, nos anos 1920 e 1930. Só no fim do Estado Novo, em 1945, o economista Octávio Gouvêa de Bulhões, já no serviço federal, propôs a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), um embrião de banco central.

O mesmo Bulhões trabalharia, então como ministro da Fazenda do primeiro governo militar, pela fundação do BC, como parte da reforma financeira aprovada em dezembro de 1964 (Lei 4.595) e posta em vigor no começo do ano seguinte. O banco nasceu com autonomia e mandatos fixos, mas esse desenho foi abandonado no governo seguinte. Por pressão do presidente general Costa e Silva, a primeira diretoria do BC, chefiada por Dênio Nogueira, acabou renunciando, para evitar uma encrenca maior, e foi substituída por uma equipe indicada pelo ministro Delfim Netto.

O BC funcionou subordinado ao Executivo até o fim do período militar e assim permaneceu depois da mudança de regime, sujeito a diferentes graus de interferência e, às vezes, operando com razoável grau de autonomia. Embora os petistas tenham sido normalmente contrários à gestão autônoma do BC, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nunca interveio de forma ostensiva na política monetária. A gestão de Henrique Meirelles parece ter sido tão tranquila, desse ponto de vista, quanto a de qualquer de seus colegas do mundo avançado.

O padrão mudou com a presidente Dilma Rousseff. Desde seu primeiro mandato, a política monetária foi mais frouxa, dando espaço a uma inflação maior. Em 2013, com a imagem comprometida, o BC iniciou um aperto, mas a gestão das contas públicas havia piorado sensivelmente e as pressões inflacionárias já eram muito fortes. Em 2015, recessão e inflação disparada já devastavam o País. Na campanha pela reeleição, a presidente Dilma Rousseff condenou a ideia de um BC autônomo. Segundo ela, isso beneficiaria só os bancos particulares, interessados em juros altos.

Em 2007, o senador Arthur Virgílio (PSDB-AM) apresentou um projeto de lei de autonomia do BC. A discussão continuou, mas, durante anos, poucos parlamentares parecem ter-se interessado por uma política monetária conduzida de forma autônoma por autoridades com mandato. Outros textos foram propostos, o assunto foi revisto em algumas ocasiões e um projeto foi afinal aprovado no começo deste ano. Contestado por dois partidos de oposição, foi afinal sustentado pelo STF.

Pelo projeto, os diretores do BC terão mandato de quatro anos, com possibilidade de uma recondução. Sua missão central será defender o poder de compra da moeda, por meio do combate à inflação. A busca do pleno-emprego é um objetivo secundário, sempre observado, de fato, pelas administrações do BC. Uma política monetária conduzida com seriedade pode ser, às vezes, tão desagradável quanto certos medicamentos. Daí a importância da autonomia, consagrada legalmente com tanto atraso.

Limitar precatórios não passa de ‘contabilidade criativa’

O Globo

A alta de 72% na previsão de pagamento de dívidas judiciais é o principal entrave à conclusão do Orçamento de 2022 — e, por tabela, aos planos eleitorais do governo. Na tentativa de resolvê-lo, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, se saiu com uma solução engenhosa: limitar o desembolso no ano que vem ao valor pago em 2016 reajustado pela inflação, critério idêntico ao adotado para as despesas sujeitas ao teto de gastos. É sem dúvida uma ideia criativa. Mas, ainda que prospere como saída jurídica, não para de pé do ponto de vista das finanças públicas. Apenas contribui para a incerteza.

Pela solução de Fux, em vez de, como mandam a lei e a jurisprudência do próprio STF, pagar os R$ 89,5 bilhões previstos em dívidas (sobre as quais não existe mais recurso judicial possível), o governo pagaria apenas, no cálculo da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara, R$ 37,8 bilhões. Estaria, em consequência, aberto um espaço generoso para outras despesas, como o programa social de cunho eleitoreiro do presidente Jair Bolsonaro.

Como seria decidido quem receberia? Fux conduz uma negociação intensa com Executivo e Legislativo para definir. Em princípio, os R$ 26,6 bilhões em dívidas de pequeno valor seriam honrados integralmente. Para pagar os demais R$ 62,9 bilhões em dívidas maiores, os “precatórios”, restariam pouco menos de R$ 12 bilhões, metade do valor previsto na famigerada Proposta de Emenda Constitucional dos Precatórios (PEC) que o governo encaminhou ao Congresso. É inevitável que a negociação resulte em algum tipo de parcelamento.

Se estender o pagamento dos precatórios já constituía um calote absurdo com o aval do Congresso numa PEC, que dizer de um critério decidido num acordo entre os Poderes que não passa pelo crivo parlamentar? A PEC, por estapafúrdia que fosse, ao menos deixava claro o parcelamento em nove anos para dívidas acima de R$ 66 milhões. A solução de Fux deixa tudo ao sabor da conjuntura orçamentária. É inevitável que traga para o governo federal os problemas hoje recorrentes no pagamento de precatórios de estados e municípios — que, mesmo depois de dezenas de decisões e acordos judiciais, ainda somavam R$ 151,5 bilhões no fim de 2020.

Nas contas da consultoria orçamentária da Câmara, limitar os pagamentos pelo critério sugerido por Fux abriria um rombo orçamentário até 2036 de no mínimo R$ 672 bilhões, ou R$ 1,44 trilhão num cenário mais realista. “Na melhor das hipóteses, seriam necessários pelo menos quatro anos para pagar os precatórios postergados de 2022”, afirmam os consultores. “Não haveria pagamentos de novos precatórios até 2025, quando começariam a ser pagos os precatórios que deveriam ter sido honrados em 2023.”

É obviamente uma saída inaceitável para quem tem dívidas a receber do governo já decididas na última instância da Justiça, depois de processos que levam anos, às vezes décadas. E também para qualquer cidadão preocupado com a saúde e a transparência das contas públicas. Se a União precisa financiar sua necessidade de gasto, a forma fiscalmente correta de fazer isso é, com aval do Congresso, emitir títulos da dívida pública no mercado e reconhecê-los em seu passivo. O resto não passa de “contabilidade criativa”.

Deterioração na segurança pública é mascarada por apagão de dados

O Globo

As cidades e os estados mudam, mas as cenas são as mesmas. Bandos armados invadem as ruas, espalham o terror, matam inocentes, incendeiam veículos e explodem agências bancárias como se estivessem num filme de ação — um filme em que os bandidos ganham. O último município de porte médio a passar por isso foi Araçatuba, a 521 km de São Paulo. Entre os estados onde recentemente houve crimes semelhantes estão Santa Catarina e Pará.

Depois do ataque de segunda-feira, que deixou ao menos três mortos e quatro feridos, aulas foram suspensas, e a polícia ainda procurava por bombas deixadas pelos criminosos. No Brasil sob Jair Bolsonaro, presidente que parece um garoto-propaganda de rifles e revólveres, as quadrilhas fazem do interior do país um faroeste e deixam a polícia em papel de coadjuvante.

Os dados divulgados ontem no “Atlas da violência 2021”, parceria entre Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), dão poucos motivos para otimismo. Na estatística, o número de homicídios entre 2018 e 2019 caiu 22,1%, segundo dados do sistema do Ministério da Saúde (SIM). Mas há muitas dúvidas sobre a qualidade dos números. Ao contar os homicídios registrados em boletins de ocorrência produzidos pelas Polícias Civis, chega-se à conclusão de que as mortes violentas intencionais em 2019 foram 5% superiores ao dado registrado no SIM.

Uma explicação técnica ajuda a entender o motivo provável da diferença. O número de mortes violentas em que o Estado é incapaz de identificar a motivação deu um salto, como resultado da negligência dos governos estaduais e federal: de 9.799 em 2017 para 16.648 em 2019. Essas mortes não são classificadas como homicídios, embora estime-se que 75% devessem ser enquadradas nessa categoria. A melhora no indicador é exagerada, em virtude do apagão de dados.

No caso do Rio de Janeiro, a distorção é gritante. A taxa de homicídios diminuiu 45,3% em 2019, mas as mortes violentas por causa indeterminada subiram 237%. De cada dez mortes violentas, mais de três não têm causa definida. No Rio de Janeiro e em São Paulo, a taxa de homicídios é menor que a taxa de mortes violentas sem motivo identificado. Na Bahia e no Ceará, os dados também sofreram piora, dizem os pesquisadores do Ipea e do FBSP.

Olhando para a frente, não falta motivo para preocupação. A queda de homicídios no Brasil está ligada a fatores como envelhecimento da população, calmaria nas guerras entre facções criminosas e Estatuto do Desarmamento. Esse último ponto tem sido enfraquecido pela política armamentista de Bolsonaro. Pesquisas atestam a relação de causa e efeito entre aumento na circulação de armas e homicídios. Isso deverá ser sentido nos indicadores de 2020 e 2021, anos em que a venda de armas disparou — e os assassinatos voltaram a crescer. O presidente, como sabemos, não confia em pesquisadores nem na ciência. O custo do culto à ignorância está nas vítimas em Araçatuba e noutras cidades a cada dia mais violentas

O nome da crise

Folha de S. Paulo

Ao tentar abafar manifesto empresarial, governo explicita papel de Bolsonaro

Movimentos atabalhoados e truculentos do governo Jair Bolsonaro precipitaram a divulgação de um manifesto organizado por associações empresariais e subscrito por mais de duas centenas delas.

Na versão que chegou aos meios de comunicação, trata-se de um pedido de entendimento entre os Poderes, em um texto tão comedido que passaria por anódino não fosse a desordem instaurada pelo chefe do Executivo —e nem mesmo há no documento atribuição de responsabilidade pela crise.

Por meio de suas intervenções, no entanto, auxiliares do presidente como o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o chefe da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, cuidaram de explicitar o sujeito oculto do conflito institucional e o objeto implícito da preocupação empresarial: as ameaças golpistas de Bolsonaro.

Além disso, tal reação acabou por levar um setor do agronegócio a publicar de modo oficial e por sua conta um apelo muito mais firme pelo diálogo, pela tolerância e pela defesa da democracia.

A iniciativa veio de associações preocupadas com a deterioração da imagem internacional do Brasil, com o ambiente e com afrontas ao Estado democrático de Direito.

Apesar de disseminar temores entre os organizadores do manifesto, que ficaram na defensiva, o governo acabou por escancarar seu isolamento —e por demonstrar que pretende calar qualquer voz que julgue contrária a seus desígnios, de resto mais uma evidência de sua crescente paranoia.

Para tanto, manipulou a condição de administrador de bancos públicos para ameaçar a Febraban e as instituições privadas.

Contou, ademais, com o auxílio de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados e líder do centrão. Lira acertou com Paulo Skaf, presidente da Fiesp e até ontem um bolsonarista integral, um adiamento, talvez “sine die”, do documento empresarial.

Tenta-se de modo autoritário e contraproducente ocultar más notícias que venham a desanimar as manifestações do 7 de Setembro, com as quais Bolsonaro busca exibir apoio popular em seu desafio ao Congresso e ao Judiciário.

Ainda que um texto formal venha a ser divulgado somente depois das manifestações bolsonaristas do Dia da Independência, ou mesmo seja deixado de lado, Bolsonaro atraiu para si mais descrédito.

Fica cada vez mais claro que o bravateiro conta apenas com o apoio de franjas radicais e minoritárias do eleitorado e da sociedade organizada; que recusa qualquer diálogo e quer sufocar a crítica, não importa o tamanho ou a origem da insatisfação social. A tentativa de abafar uma mostra de insatisfação deu-lhe visibilidade.

Madrugada de terror

Folha de S. Paulo

Ineficiência policial e oferta de armas favorecem assaltos como o de Araçatuba

Enquanto o país debate o perigo da politização de corporações armadas, facções criminosas não dormem em serviço. De madrugada, desta feita em Araçatuba (SP), um comboio de assaltantes pôs uma cidade interiorana sob domínio do terror sem encontrar resistência.

Imagens apavorantes atestam a ousadia de bandidos com enorme poder de fogo. Caminhões incendiados para barrar forças de segurança; reféns amarrados no teto de veículos; bombas de acionamento remoto ou por sensores espalhados pelas vias urbanas.

Saldo da incursão facinorosa: dois araçatubenses mortos a tiros, um criminoso abatido, civis gravemente feridos por disparos e bombas, duas agências bancárias explodidas e roubadas. Um município de 200 mil habitantes paralisado por dois dias, sem aulas, sem comércio, sem direito de ir e vir —sem segurança.

Onde estão as polícias, que não conseguem coibir essa modalidade crescente de delitos espetaculares? Ações parecidas se repetem pelo interior paulista ao menos desde 2018, e só neste ano houve ataques em três outros estados. A prática teve início na década de 1990 em cidades desprotegidas do Nordeste e do Norte.

O pré-requisito para tais expedições é armamento poderoso, como pistolas ou fuzis de alto calibre e explosivos. Quadrilhas são abastecidas por organizações do tráfico, que não encontram dificuldade para obter armas de todo tipo.

Aí falham de modo flagrante Polícia Civil, Polícia Militar e Polícia Federal. No âmbito estadual, à primeira corporação caberia investigar e deslindar as cadeias de fornecimento de arsenais; à PM, aperfeiçoar o setor de inteligência para detectar operações em montagem e reprimi-las a tempo.

Fracassa também a PF, peça crucial para impedir o tráfico de armas e coordenar a inteligência no plano nacional. A instituição enfrenta desafio extra com as políticas armamentistas de Jair Bolsonaro.

O relaxamento dos controles pelo governo federal, permitindo que colecionadores, atiradores e caçadores adquiram fuzis às dezenas, tem o potencial de aumentar o poder de fogo da bandidagem. Fica mais fácil e barato roubar do que contrabandear armas.

Por fim, claudica o Exército ao fiscalizar explosivos, como lhe compete. Quadrilheiros sempre conseguem obter material desviado de pedreiras e empreiteiras, se não dos próprios quartéis.

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