EDITORIAIS
Governo se mobiliza contra um manifesto de
conciliação
Valor Econômico
O presidente e seus aliados criam um clima
corrosivo também para os negócios
Não foi o primeiro e, se depender do
presidente Jair Bolsonaro, não será o último manifesto por paz na República e
atenção às regras democráticas o que duas das mais poderosas organizações de
empresários do país, a Federação Brasileira de Bancos e a Fiesp, prepararam. A
diferença em relação aos outros foi que ele não veio a público - embora seu
conteúdo principal tenha sido amplamente divulgado.
O governo federal interveio para isso. O
ministro Paulo Guedes disse que alguém lhe tinha dito que não se tratava da
defesa da democracia, mas de um ataque da Febraban ao governo. As direções do
Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal entraram em ação e ameaçaram
deixar a associação. O convite final ao silêncio veio do presidente da Câmara
dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que solicitou a Paulo Skaf, presidente da
Fiesp e ex-aliado de Bolsonaro, que postergasse o documento para depois do 7 de
Setembro. Não houve iniciativa semelhante do deputado em relação ao presidente
da República, que incentivou a convocação de atos públicos nesta data cujas
palavras de ordem são ataques ao Supremo Tribunal Federal.
O contraste entre o comedimento de um lado
e o radicalismo de outro merece atenção. Quem acredita que a associação dos
bancos é incendiária comete o mesmo erro descomunal de quem acredita que Jair
Bolsonaro é um liberal. O manifesto que se engendrava era bem mais comedido do
que seus antecessores e, em essência, assentava-se no pressuposto de que a
harmonia entre os Poderes está inscrita na Constituição e que por isso “é
primordial que todos os ocupantes de cargos relevantes da República sigam o que
a Constituição nos impõem”. Em seguida, pregava “serenidade, diálogo,
pacificação política e estabilidade institucional”.
Enquanto os organizadores do manifesto faziam malabarismos para não colocar em suas frases o sujeito oculto - aquele que não anda fazendo o que manda a Constituição - e igualava as condutas dos demais Poderes, que não estão provocando balbúrdia, o presidente dizia no sábado em Goiânia que não deseja rupturas, “mas tudo tem limite” e que não aceitará uma derrota nas eleições de 2022. Deu três chances sobre seu futuro: “Estar preso, morto ou a vitória”. Bolsonaro afirmou, a mais de um ano da votação, que pacificamente, pelas normas do jogo democrático, não entregará o poder.
O presidente e as correntes bolsonaristas
que preparam atos no 7 de setembro graduaram as palavras de ordem e agora dão
prioridade à “liberdade de expressão”, embora nas convocações por redes sociais
abundem críticas à “ditadura da toga”, ao “ativismo político” do STF e defesas
do voto impresso. Organizações empresariais podem, e em ambientes polarizados
como agora, devem, indicar os rumos que entendam melhor para o país,
especialmente se o que estiver em questão for o regime democrático - como é o
caso.
Em todas as pesquisas de opinião, os
empresários formam o segmento mais fiel e o que melhor avalia o desempenho de
Bolsonaro e seu governo. Esse apoio também está encolhendo, mas de forma menos
acentuada. O raro protagonismo da Febraban em uma manifestação política é, em
si, um sintoma de descontentamento que se dissemina entre as cúpulas
empresariais. Os êmulos do presidente, para não incomodar o chefe, não tentam
mudar as causas desse descontentamento, e sim apenas inibir sua expressão
escrita. Mas o estrago já está feito. Fiesp e Febraban não saem ilesas do
episódio. Bastou um conselho do mensageiro do poder para adiarem a expressão
legítima de suas posições.
O presidente e seus aliados criam um clima
corrosivo para os negócios e para largas áreas da vida social e cultural:
produzem desastres em série na cultura, no meio ambiente, na saúde, na educação
etc. Na economia só o ministro da pasta acredita que as coisas vão bem. A ideia
de que o sufoco fiscal cedera foi passageira e foi seguida por várias outras
que buscam furar o teto de gastos. A desconfiança sobre o futuro das contas
públicas impede há meses uma queda significativa do dólar, cuja
megadesvalorização transformou um bem-vindo aumento das commodities em um motor
da inflação, que beira os 9%.
O risco Bolsonaro tornou-se sinônimo do risco Brasil. O Banco Central está subindo rapidamente os juros e contratando um crescimento anêmico - mais um - em 2022, ano de eleições. Bolsonaro cria condições desfavoráveis para si próprio nas urnas - e diz, confiante, que derrotado não será.
A paz que dá medo ao governo
O Estado de S. Paulo
O clamor por responsabilidade e harmonia institucional é visto pelo Planalto como radical oposição aos planos do bolsonarismo
Os tempos atuais são tão esquisitos que um
manifesto pedindo a pacificação e a harmonia entre os Três Poderes foi encarado
como ato de oposição ao presidente da República. Aliado do governo federal, o
presidente da Câmara, Arthur Lira, pediu ao presidente da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, que adiasse a divulgação
do documento para depois do 7 de Setembro.
Com mais de 200 assinaturas, o manifesto
nasceu da preocupação da Federação Nacional dos Bancos (Febraban) com a
situação do País. A Fiesp adiou sua divulgação, mas outras vozes se levantaram.
Na segunda-feira passada, entidades do
agronegócio manifestaram-se em defesa do Estado Democrático de Direito. “As
entidades (...) tornam pública sua preocupação com os atuais desafios à
harmonia político-institucional e, como consequência, à estabilidade econômica
e social em nosso País. (...) Em nome de nossos setores, cumprimos o dever de
nos juntar a muitas outras vozes responsáveis, em chamamento a que nossas
lideranças se mostrem à altura do Brasil e de sua história”, diz a nota.
“O voto de confiança foi dado, e a
confiança não foi retribuída”, disse Marcello Brito, presidente da Associação
Brasileira do Agronegócio (Abag), uma das entidades que endossaram o manifesto.
“Talvez a gente tenha sido condescendente por um tempo longo demais. A omissão
não se admite em tempos de pressão como agora”, disse Brito, em entrevista na
TV Cultura.
As entidades do agronegócio disseram o
óbvio. “O desenvolvimento econômico e social do Brasil, para ser efetivo e
sustentável, requer paz e tranquilidade”, lê-se na nota. Infelizmente, no
entanto, expressar o óbvio tornou-se hoje ato de enfrentamento a Jair
Bolsonaro, tal é o seu comportamento conflituoso e irresponsável.
O óbvio também foi dito por centrais
sindicais. “São quase 15 milhões de desempregados, seis milhões de
desalentados, outros seis milhões de inativos que precisam de um emprego e mais
sete milhões ocupados de forma precária. Inflação alta, carestia e fuga de
investimentos. (...) O próprio presidente se encarrega de pessoalmente gerar
confrontos diários, criando um clima de instabilidade e uma imagem de
descrédito do Brasil”, diz nota conjunta das centrais.
Tal é a disfuncionalidade do Executivo
federal – não cabe esperar nada de Jair Bolsonaro –, que o prognóstico também
se tornou consenso. “É preciso que o Legislativo e o Judiciário em todos os
níveis, os governadores e prefeitos tomem à frente de decisões importantes em
nome do Estado Democrático de Direito, não apenas para conter os arroubos
autoritários do presidente, mas também que disponham sobre questões urgentes
como geração de empregos decentes, a necessidade de programas sociais e o
enfrentamento correto da crise sanitária”, disseram as centrais sindicais.
Ainda que em diferentes linguagens, os
manifestos expressam a mesma preocupação. Há uma grave crise política e
institucional, que vem causando profundos prejuízos sociais e econômicos ao
País. E mesmo que o Palácio do Planalto não seja citado, a simples menção à
crise remete diretamente a Jair Bolsonaro. Todos sabem a causa da crise.
Habitualmente, a desestabilização e a
desarmonia são objetivos da oposição. Ainda que possa ser criticada, a tática é
compreensível. Opositores tentam criar dificuldades para que o governo não seja
capaz de implementar suas propostas, das quais a oposição discorda.
Com Jair Bolsonaro na Presidência da
República, a situação é a inversa. O governo tenta criar constantemente
arruaças, conflitos e instabilidades. Bolsonaristas ameaçam dar um golpe de
Estado. Em contraste, todo o restante – desde entidades do agronegócio e
instituições financeiras até centrais sindicais – pede, em inusitado uníssono,
paz e tranquilidade.
A confirmar o despautério, o clamor por
responsabilidade e harmonia institucional é visto pelo Palácio do Planalto como
radical oposição aos planos do bolsonarismo. O alerta a Hamlet sobre a podridão
na Dinamarca teria aqui tons de inapropriado eufemismo.
Eleições e fake News
O Estado de S. Paulo
A melhor defesa contra a desinformação sempre será a informação qualificada
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passará
por seu maior teste em 2022. Esse foi um dos consensos obtidos entre os
especialistas recebidos pelo Estado para debater o tema “Eleições e
Fake News”.
Segundo o levantamento Manipulação Organizada das
Mídias Sociais do Oxford Internet Institute, as milícias
digitais, ou seja, atores governamentais ou partidários empenhados na
manipulação da opinião pública online, estão se proliferando e se
profissionalizando em todo o mundo. Num cenário em que os tradicionais limites
à liberdade de expressão – calúnia, injúria e difamação – parecem insuficientes
para proteger bens fundamentais, como eleições limpas, é legítima a pressão por
mecanismos legais de combate à desinformação. O desafio é reprimi-la sem ferir
a liberdade de expressão.
No afã de combater a desinformação, o risco
é que o poder público crie mecanismos incompatíveis com a Constituição ou mais
especificamente com os princípios norteadores do Marco Civil da Internet: a
neutralidade da rede, a liberdade de expressão e a proteção à privacidade. Como
disse Carlos Affonso Souza, do ITS Rio, há algumas “armadilhas” para 2022 que
precisam ser desarmadas.
O projeto aprovado pelo Senado e em
tramitação na Câmara da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e
Transparência na Internet, por exemplo, contém várias armadilhas, como a
responsabilização das redes por conteúdo veiculado pelos usuários ou a
pretensão de que elas atuem como juízes da verdade – validando, no limite, uma
censura terceirizada. Com o mesmo açodamento, no Congresso tramita um projeto
de Código Eleitoral com 900 artigos para valer já nas próximas eleições, sem
que a sociedade tenha tido tempo de assimilar as propostas, muito menos de
debatê-las.
Que a liberdade de expressão não é um valor
absoluto foi outro consenso entre os participantes do debate. Mas o princípio
fundamental a guiar os esforços de legisladores, juízes e mídias é que ela é a
regra, e a supressão de conteúdos ou perfis, a exceção. “A liberdade de
expressão é um enorme pilar da nossa democracia e sangra toda vez que um
conteúdo é retirado”, disse Diogo Rais, do Instituto de Liberdade Digital. “A
diferença é quanto ela vai sangrar e se vale a pena esse sangramento.”
Como especificou Diego Gualda, diretor
jurídico do Twitter, as ferramentas de moderação não se resumem a deletar
conteúdos ou remover perfis. “Elas têm se sofisticado e incluído ferramentas de
contextualização e rotulagem.”
Outro princípio é que a autorregulação das
mídias deveria ser a regra, e a regulação e a intervenção do Estado, a exceção.
Naturalmente, é o Legislativo que define o que é lícito ou ilícito e é o
Judiciário que aplica essa definição aos casos concretos. Mas, se ele é a
instância definitiva de controle, não significa que deva ser a primeira e
única, como sugerem certas propostas legislativas. “As regras da plataforma são
como se fossem os primeiros socorros”, sugeriu Affonso Souza, “aqueles que vão
prestar o primeiro atendimento.” Em casos de abuso na moderação de conteúdos, o
Judiciário sempre pode ser acionado para revisar os procedimentos das mídias.
Em termos de legislação, de um modo geral
as melhores propostas são aquelas que vão na direção não tanto do controle de
conteúdo – o que pode facilmente degenerar em censura –, mas do combate a
comportamentos abusivos. Em 2020, o próprio TSE firmou uma parceria com o
Facebook com o objetivo de enfrentar comportamentos inautênticos nas redes,
como o uso de perfis falsos e contas automatizadas. A desmonetização de canais
sistematicamente empenhados em divulgação de conteúdo enganoso ou ataques a
instituições também segue nessa direção.
Mas a melhor defesa contra a desinformação
sempre será a informação qualificada. As mídias sociais “têm de trabalhar para
reforçar aqueles produtores de conteúdo que fazem bem feito e seguem a técnica
jornalística”, disse Manoel Fernandes, da consultoria Bites. “Faço aqui uma
defesa intransigente do jornalismo profissional”, concluiu, “esse será o nosso
antídoto com relação às fake news.”
O BC enfim autônomo
O Estado de S. Paulo
Mantendo a autonomia do BC, o STF impede um grave retrocesso da gestão econômica
Defensor do poder de compra das famílias e
da ordem financeira, o Banco Central do Brasil (BCB), criado há mais de meio
século, tem finalmente sua autonomia assegurada por lei e por decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF). Blindada contra pressões políticas e
interferências de ministros e do chefe de governo, a principal autoridade
monetária pode com mais segurança trabalhar pela estabilidade de preços,
condição da previsibilidade econômica e do crescimento seguro. Por 8 votos a 2,
a Corte rejeitou a ação de parlamentares do PT e do PSOL contra a lei aprovada
em 10 de fevereiro. Com isso, o Judiciário impediu um grave retrocesso e
assegurou mais um passo, tão raro nos últimos tempos, para a inserção do País
na modernidade.
Há dez anos, só o Brasil, entre 27 países
onde vigorava o sistema de metas de inflação, tinha um banco central sem
mandatos fixos para seus diretores. Atrasos são uma das marcas da história da
administração monetária no País. O Federal Reserve (Fed), o BC americano,
nasceu em 1913, com a missão de combinar estabilidade monetária e emprego.
Bancos centrais foram criados em vários países latino-americanos, como
Argentina, Colômbia, Chile, Equador e Bolívia, nos anos 1920 e 1930. Só no fim
do Estado Novo, em 1945, o economista Octávio Gouvêa de Bulhões, já no serviço
federal, propôs a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), um
embrião de banco central.
O mesmo Bulhões trabalharia, então como
ministro da Fazenda do primeiro governo militar, pela fundação do BC, como
parte da reforma financeira aprovada em dezembro de 1964 (Lei 4.595) e posta em
vigor no começo do ano seguinte. O banco nasceu com autonomia e mandatos fixos,
mas esse desenho foi abandonado no governo seguinte. Por pressão do presidente
general Costa e Silva, a primeira diretoria do BC, chefiada por Dênio Nogueira,
acabou renunciando, para evitar uma encrenca maior, e foi substituída por uma
equipe indicada pelo ministro Delfim Netto.
O BC funcionou subordinado ao Executivo até
o fim do período militar e assim permaneceu depois da mudança de regime,
sujeito a diferentes graus de interferência e, às vezes, operando com razoável
grau de autonomia. Embora os petistas tenham sido normalmente contrários à
gestão autônoma do BC, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nunca interveio
de forma ostensiva na política monetária. A gestão de Henrique Meirelles parece
ter sido tão tranquila, desse ponto de vista, quanto a de qualquer de seus
colegas do mundo avançado.
O padrão mudou com a presidente Dilma
Rousseff. Desde seu primeiro mandato, a política monetária foi mais frouxa,
dando espaço a uma inflação maior. Em 2013, com a imagem comprometida, o BC
iniciou um aperto, mas a gestão das contas públicas havia piorado sensivelmente
e as pressões inflacionárias já eram muito fortes. Em 2015, recessão e inflação
disparada já devastavam o País. Na campanha pela reeleição, a presidente Dilma
Rousseff condenou a ideia de um BC autônomo. Segundo ela, isso beneficiaria só
os bancos particulares, interessados em juros altos.
Em 2007, o senador Arthur Virgílio
(PSDB-AM) apresentou um projeto de lei de autonomia do BC. A discussão
continuou, mas, durante anos, poucos parlamentares parecem ter-se interessado
por uma política monetária conduzida de forma autônoma por autoridades com
mandato. Outros textos foram propostos, o assunto foi revisto em algumas
ocasiões e um projeto foi afinal aprovado no começo deste ano. Contestado por
dois partidos de oposição, foi afinal sustentado pelo STF.
Pelo projeto, os diretores do BC terão mandato de quatro anos, com possibilidade de uma recondução. Sua missão central será defender o poder de compra da moeda, por meio do combate à inflação. A busca do pleno-emprego é um objetivo secundário, sempre observado, de fato, pelas administrações do BC. Uma política monetária conduzida com seriedade pode ser, às vezes, tão desagradável quanto certos medicamentos. Daí a importância da autonomia, consagrada legalmente com tanto atraso.
Limitar precatórios não passa de ‘contabilidade
criativa’
O Globo
A alta de 72% na previsão de pagamento de dívidas judiciais é o principal
entrave à conclusão do Orçamento de 2022 — e, por tabela, aos planos eleitorais
do governo. Na tentativa de resolvê-lo, o presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF), ministro Luiz Fux, se saiu com uma solução engenhosa: limitar o
desembolso no ano que vem ao valor pago em 2016 reajustado pela inflação,
critério idêntico ao adotado para as despesas sujeitas ao teto de gastos. É sem
dúvida uma ideia criativa. Mas, ainda que prospere como saída jurídica, não
para de pé do ponto de vista das finanças públicas. Apenas contribui para a
incerteza.
Pela solução de Fux, em vez de, como mandam
a lei e a jurisprudência do próprio STF, pagar os R$ 89,5 bilhões previstos em
dívidas (sobre as quais não existe mais recurso judicial possível), o governo
pagaria apenas, no cálculo da Consultoria de Orçamento e Fiscalização
Financeira da Câmara, R$ 37,8 bilhões. Estaria, em consequência, aberto um
espaço generoso para outras despesas, como o programa social de cunho
eleitoreiro do presidente Jair Bolsonaro.
Como seria decidido quem receberia? Fux
conduz uma negociação intensa com Executivo e Legislativo para definir. Em
princípio, os R$ 26,6 bilhões em dívidas de pequeno valor seriam honrados
integralmente. Para pagar os demais R$ 62,9 bilhões em dívidas maiores, os
“precatórios”, restariam pouco menos de R$ 12 bilhões, metade do valor previsto
na famigerada Proposta de Emenda Constitucional dos Precatórios (PEC) que o governo
encaminhou ao Congresso. É inevitável que a negociação resulte em algum tipo de
parcelamento.
Se estender o pagamento dos precatórios já
constituía um calote absurdo com o aval do Congresso numa PEC, que dizer de um
critério decidido num acordo entre os Poderes que não passa pelo crivo
parlamentar? A PEC, por estapafúrdia que fosse, ao menos deixava claro o
parcelamento em nove anos para dívidas acima de R$ 66 milhões. A solução de Fux
deixa tudo ao sabor da conjuntura orçamentária. É inevitável que traga para o
governo federal os problemas hoje recorrentes no pagamento de precatórios de
estados e municípios — que, mesmo depois de dezenas de decisões e acordos
judiciais, ainda somavam R$ 151,5 bilhões no fim de 2020.
Nas contas da consultoria orçamentária da
Câmara, limitar os pagamentos pelo critério sugerido por Fux abriria um rombo
orçamentário até 2036 de no mínimo R$ 672 bilhões, ou R$ 1,44 trilhão num
cenário mais realista. “Na melhor das hipóteses, seriam necessários pelo menos
quatro anos para pagar os precatórios postergados de 2022”, afirmam os
consultores. “Não haveria pagamentos de novos precatórios até 2025, quando
começariam a ser pagos os precatórios que deveriam ter sido honrados em 2023.”
É obviamente uma saída inaceitável para
quem tem dívidas a receber do governo já decididas na última instância da
Justiça, depois de processos que levam anos, às vezes décadas. E também para
qualquer cidadão preocupado com a saúde e a transparência das contas públicas.
Se a União precisa financiar sua necessidade de gasto, a forma fiscalmente
correta de fazer isso é, com aval do Congresso, emitir títulos da dívida
pública no mercado e reconhecê-los em seu passivo. O resto não passa de
“contabilidade criativa”.
Deterioração na segurança pública é
mascarada por apagão de dados
O Globo
As cidades e os estados mudam, mas as cenas são as mesmas. Bandos armados
invadem as ruas, espalham o terror, matam inocentes, incendeiam veículos e
explodem agências bancárias como se estivessem num filme de ação — um filme em
que os bandidos ganham. O último município de porte médio a passar por isso foi
Araçatuba, a 521 km de São Paulo. Entre os estados onde recentemente houve
crimes semelhantes estão Santa Catarina e Pará.
Depois do ataque de segunda-feira, que
deixou ao menos três mortos e quatro feridos, aulas foram suspensas, e a
polícia ainda procurava por bombas deixadas pelos criminosos. No Brasil sob
Jair Bolsonaro, presidente que parece um garoto-propaganda de rifles e
revólveres, as quadrilhas fazem do interior do país um faroeste e deixam a
polícia em papel de coadjuvante.
Os dados divulgados ontem no “Atlas da
violência 2021”, parceria entre Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), dão poucos motivos para otimismo.
Na estatística, o número de homicídios entre 2018 e 2019 caiu 22,1%, segundo
dados do sistema do Ministério da Saúde (SIM). Mas há muitas dúvidas sobre a
qualidade dos números. Ao contar os homicídios registrados em boletins de
ocorrência produzidos pelas Polícias Civis, chega-se à conclusão de que as
mortes violentas intencionais em 2019 foram 5% superiores ao dado registrado no
SIM.
Uma explicação técnica ajuda a entender o
motivo provável da diferença. O número de mortes violentas em que o Estado é
incapaz de identificar a motivação deu um salto, como resultado da negligência
dos governos estaduais e federal: de 9.799 em 2017 para 16.648 em 2019. Essas
mortes não são classificadas como homicídios, embora estime-se que 75% devessem
ser enquadradas nessa categoria. A melhora no indicador é exagerada, em virtude
do apagão de dados.
No caso do Rio de Janeiro, a distorção é
gritante. A taxa de homicídios diminuiu 45,3% em 2019, mas as mortes violentas
por causa indeterminada subiram 237%. De cada dez mortes violentas, mais de
três não têm causa definida. No Rio de Janeiro e em São Paulo, a taxa de
homicídios é menor que a taxa de mortes violentas sem motivo identificado. Na
Bahia e no Ceará, os dados também sofreram piora, dizem os pesquisadores do
Ipea e do FBSP.
Olhando para a frente, não falta motivo para preocupação. A queda de homicídios no Brasil está ligada a fatores como envelhecimento da população, calmaria nas guerras entre facções criminosas e Estatuto do Desarmamento. Esse último ponto tem sido enfraquecido pela política armamentista de Bolsonaro. Pesquisas atestam a relação de causa e efeito entre aumento na circulação de armas e homicídios. Isso deverá ser sentido nos indicadores de 2020 e 2021, anos em que a venda de armas disparou — e os assassinatos voltaram a crescer. O presidente, como sabemos, não confia em pesquisadores nem na ciência. O custo do culto à ignorância está nas vítimas em Araçatuba e noutras cidades a cada dia mais violentas
O nome da crise
Folha de S. Paulo
Ao tentar abafar manifesto empresarial,
governo explicita papel de Bolsonaro
Movimentos atabalhoados e truculentos do
governo Jair Bolsonaro precipitaram a divulgação de um manifesto
organizado por associações empresariais e subscrito por mais de duas
centenas delas.
Na versão que chegou aos meios de
comunicação, trata-se de um pedido de entendimento entre os Poderes, em um
texto tão comedido que passaria por anódino não fosse a desordem instaurada
pelo chefe do Executivo —e nem mesmo há no documento atribuição de
responsabilidade pela crise.
Por meio de suas intervenções, no entanto,
auxiliares do presidente como o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o chefe
da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, cuidaram de explicitar o sujeito
oculto do conflito institucional e o objeto implícito da preocupação
empresarial: as ameaças golpistas de Bolsonaro.
Além disso, tal reação acabou por levar um
setor do agronegócio a publicar de modo oficial e por sua conta um apelo
muito mais firme pelo diálogo, pela tolerância e pela defesa da democracia.
A iniciativa veio de associações
preocupadas com a deterioração da imagem internacional do Brasil, com o
ambiente e com afrontas ao Estado democrático de Direito.
Apesar de disseminar temores entre os
organizadores do manifesto, que ficaram na defensiva, o governo acabou por
escancarar seu isolamento —e por demonstrar que pretende calar qualquer voz que
julgue contrária a seus desígnios, de resto mais uma evidência de sua crescente
paranoia.
Para tanto, manipulou a condição de
administrador de bancos públicos para ameaçar a Febraban e as instituições
privadas.
Contou, ademais, com o auxílio de Arthur
Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados e líder do centrão. Lira
acertou com Paulo Skaf, presidente da Fiesp e até ontem um bolsonarista
integral, um adiamento, talvez “sine die”, do documento empresarial.
Tenta-se de modo autoritário e
contraproducente ocultar más notícias que venham a desanimar as manifestações
do 7 de Setembro, com as quais Bolsonaro busca exibir apoio popular em seu
desafio ao Congresso e ao Judiciário.
Ainda que um texto formal venha a ser
divulgado somente depois das manifestações bolsonaristas do Dia da
Independência, ou mesmo seja deixado de lado, Bolsonaro atraiu para si mais
descrédito.
Fica cada vez mais claro que o bravateiro
conta apenas com o apoio de franjas radicais e minoritárias do eleitorado e da
sociedade organizada; que recusa qualquer diálogo e quer sufocar a crítica, não
importa o tamanho ou a origem da insatisfação social. A tentativa de abafar uma
mostra de insatisfação deu-lhe visibilidade.
Madrugada de terror
Folha de S. Paulo
Ineficiência policial e oferta de armas
favorecem assaltos como o de Araçatuba
Enquanto o país debate o perigo da
politização de corporações armadas, facções criminosas não dormem em serviço.
De madrugada, desta
feita em Araçatuba (SP), um comboio de assaltantes pôs uma cidade
interiorana sob domínio do terror sem encontrar resistência.
Imagens apavorantes atestam a ousadia de
bandidos com enorme poder de fogo. Caminhões incendiados para barrar forças de
segurança; reféns amarrados no teto de veículos; bombas de acionamento remoto
ou por sensores espalhados pelas vias urbanas.
Saldo da incursão facinorosa: dois
araçatubenses mortos a tiros, um criminoso abatido, civis gravemente feridos
por disparos e bombas, duas agências bancárias explodidas e roubadas. Um
município de 200 mil habitantes paralisado por dois dias, sem aulas, sem
comércio, sem direito de ir e vir —sem segurança.
Onde estão as polícias, que não conseguem
coibir essa modalidade crescente de delitos espetaculares? Ações parecidas se
repetem pelo interior paulista ao menos desde 2018, e só neste ano houve
ataques em três outros estados. A prática teve início na década de 1990 em
cidades desprotegidas do Nordeste e do Norte.
O pré-requisito para tais expedições é
armamento poderoso, como pistolas ou fuzis de alto calibre e explosivos.
Quadrilhas são abastecidas por organizações do tráfico, que não encontram
dificuldade para obter armas de todo tipo.
Aí falham de modo flagrante Polícia Civil,
Polícia Militar e Polícia Federal. No âmbito estadual, à primeira corporação
caberia investigar e deslindar as cadeias de fornecimento de arsenais; à PM,
aperfeiçoar o setor de inteligência para detectar operações em montagem e
reprimi-las a tempo.
Fracassa também a PF, peça crucial para
impedir o tráfico de armas e coordenar a inteligência no plano nacional. A
instituição enfrenta desafio extra com as políticas armamentistas de Jair
Bolsonaro.
O relaxamento dos controles pelo governo
federal, permitindo que colecionadores, atiradores e caçadores adquiram fuzis
às dezenas, tem o potencial de aumentar o poder de fogo da bandidagem. Fica
mais fácil e barato roubar do que contrabandear armas.
Por fim, claudica o Exército ao fiscalizar explosivos, como lhe compete. Quadrilheiros sempre conseguem obter material desviado de pedreiras e empreiteiras, se não dos próprios quartéis.
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