Folha de S. Paulo
Dois piparotes do mundo político real bastaram para desarranjar essa rara comunhão da elite econômica
O “manifesto”
das associações empresariais e das finanças ainda pode sair
oficialmente, mas alguns dos grandes envolvidos nesse movimento pendem, por
ora, para deixar como está para ver como é que fica. Isto é, deixar a fervura
baixar, até porque há grande confusão sobre quais rumos tomar e como decidir o
que fazer (quem vai decidir?), além de atritos,
decepções e troca de acusações meio furiosas entre quem tomou parte
mais ativa da organização do “manifesto” ou “nota”. Muita gente que deu início
ao movimento diz agora que os “rachas” e o desarranjo são um “caso lamentável”
e que lança “ridículo” sobre movimentos empresariais.
Pode ser que a coisa fique para depois do 7
de Setembro, como transpareceu de uma reunião de banqueiros na noite desta
segunda-feira (30) e de conversas entre alguns grandes industriais desde o
início envolvidos no “manifesto”, mesmo antes de a
Fiesp de Paulo Skaf entrar no jogo. Pelo menos 6 grandes empresários e um
banqueiro envolvidos ou informados desde o início assunto nem ao menos sabem em
que pé está o “manifesto” ou quem está tomando conta dele –alguns, nem mais
querem saber disso.
Na noite de segunda-feira, quando o caldo do “movimento” entornou de vez, houve uma reunião entre os presidentes dos maiores bancos públicos, Banco do Brasil e Caixa, com alguns dos presidentes dos maiores bancos privados, Bradesco e Itaú, entre eles e o comando da Febraban.
De acordo com um participante do encontro e
um informante muito bem situado, ex-grande-banqueiro, Fausto Ribeiro, do BB,
propôs em termos muito diplomáticos que a Febraban de fato não deveria assinar
o “manifesto” (no final da semana passada, o presidente da Caixa, Pedro
Guimarães, dizendo ter apoio de Paulo Guedes, insinuara para banqueiros
privados que se opor ao governo “não seria muito bom para os bancos privados”).
Ao final da reunião de segunda-feira, os banqueiros privados não disseram sim
ou não à “bandeira branca” de Ribeiro, do BB. O assunto será mastigado e
digerido pelos próximos dias, pelo menos até a próxima sexta-feira.
Desde o final da semana passada, ouvia-se e
lia-se por aí que: 1) o “empresariado” se organizava em uma ampla coalizão; 2)
o “mercado”
estava “desembarcando” do governo.
O desarranjo rápido dessa de fato rara
comunhão da elite econômica em torno de um tema político serviu para mostrar
que se trata de ficções e equívocos ingênuos sobre o envolvimento de comandantes
de empresas na política e sobre o funcionamento de mercados financeiros. Dois
piparotes do mundo político real bastaram para desarranjar a coisa toda.
Um peteleco veio da conversa
arranjada entre Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e Paulo Skaf,
político e líder sindical minoritário fantasiado de empresário (o “manifesto”
foi adiado). Outro, do político-financista bolsonarista que comanda a Caixa
Econômica Federal, Pedro Guimarães. Foi ele que tocou a ameaça de saída de BB e
CEF da Febraban e levou para Paulo Guedes a “informação” de que versões
iniciais da “nota” ou “manifesto” atacavam Bolsonaro. O “ataque” era escrever
que “esse cenário mais hostil tem potencial para gerar graves impactos na nossa
economia” e pedir que “cada ator político” agisse com “racionalidade”, o que
para o bolsonarismo pode ser mesmo um insulto.
Não há coalizão empresarial com movimento
amplo organizado, sistemático ou estruturado, muito menos ainda conexão com a
política politiqueira de fato. Trata-se de dois mundos que conversam
circunstancialmente, a depender do interesse setorial das partes, em momentos específicos
(ou por meio de lobby habitual). A história da organização do “manifesto”, que
começou lá pelo dia 10 de agosto, e de seu desarranjo mostram como o movimento
é ocasional.
O “manifesto” foi uma ideia de dois
banqueiros e de grandes industriais próximos, ligados ao Iedi (Instituto de
Estudos para o Desenvolvimento Industrial). Foi uma consequência do manifesto
“Eleições Serão Respeitadas”, publicado em 5 de agosto, com a assinatura de
parte dos grandes banqueiros, de intelectuais e de gente da dita sociedade
civil organizada, que rubricaram o documento como “pessoas físicas” (aliás,
quase todas amigas e próximas, a julgar pelas assinaturas iniciais).
Feito isso, na semana seguinte esses
banqueiros pensaram em ação mais institucional: um documento assinado por
associações empresariais. A ideia foi para a Febraban, que passou a reunir
interessados. Na história contada por quem estava no início do movimento, foi
então que Paulo Skaf entrou no jogo e assumiu as tarefas práticas, para grande
irritação ou desconfiança de muita gente graúda envolvida, de quem Skaf é
desafeto, para dizê-lo de modo muito ameno. Skaf é tido no mínimo como um
oportunista que usa uma associação empresarial (a Fiesp, por 17 anos) para seus
interesses pessoais e políticos. Teria usado o “manifesto” ou “nota” a fim de
ganhar protagonismo, se situar politicamente e ganhar espaço eleitoral em
alguma coalizão eleitoral em 2022.
A entrada de Skaf-Fiesp na história e a
tentativa de juntar muitas associações fez com que o manifesto se tornasse
ainda mais aguado (o texto sempre foi “pianinho”). No entanto, os organizadores
iniciais do movimento não se importaram muito: o principal era dizer que a
“sociedade empresarial” e a “sociedade brasileira” não dariam apoio “qualquer
ruptura institucional”, que a “elite brasileira pode (sic) se organizar para
evitar o autoritarismo", mas não queriam confusão direta com Bolsonaro. No
mais, não existia um comitê, uma organização duradoura qualquer. Depois das
conversas, das tantas que correm no Whatsapp ou nos famosos “jantares”,
deixou-se Skaf botar o bloco na rua, muito por omissão, fastio e falta de
interesse em militância.
O sururu nos mercados financeiros lá por
volta do dia 18 de agosto motivou, por sua vez, a conversa de que “o mercado
desembarca” de Bolsonaro. “O mercado” não existe, mesmo que alguns donos ou
grandes administradores de dinheiro deem entrevistas dizendo isso e aquilo, até
especificamente sobre Bolsonaro, como começou a ocorrer em semanas mais
recentes. Quando chegam a esse ponto, de falar publicamente sobre um
presidente, ainda mais se tratando de ex-adeptos do governante, quer dizer que
o caldo entornou mesmo, que ficar malvisto pelo poder tem menos custo que
deixar a baderna continuar. Mas os movimentos do dinheiro, em si, não têm nada
a ver diretamente com essas conversas.
Por volta do dia 18, havia certo salseiro
nos mercados financeiros e de commodities do mundo, derivados de paniquitos e
rumores sobre as economias de EUA e China, como de costume. Dadas certas
características do mercado brasileiro, do grande endividamento público, do
rumor político de que Bolsonaro poderia aumentar a dívida para ganhar a eleição
e, enfim, da incerteza selvagem que causa este governo, os solavancos nos
preços aqui foram maiores.
Mas o paniquito passou, embora tenham
ficado sequelas nas taxas de juros —a depender das idas e vindas da finança
mundial e do grau de tolice do governo, pode melhorar um tanto ou piorar. O
temor de aumento sem controle da dívida (o “fura teto”, gastos com o novo Bolsa
Família e outras medidas também eleitoreiras), a inflação ainda em alta e o
crescimento em baixa de 2022 parecem ser os fatores principais de taxas de
juros longas mais altas, Bolsa meio estagnada e dólar acima dos R$ 5, dando
pulos fáceis até R$ 5,50.
Essa variação daninha de preços financeiros,
porém, não é resultado de uma convenção dos financistas e donos de dinheiro em
geral, é até ridículo ter de dizê-lo, nem mesmo é unânime. Quer dizer apenas
que tem mais gente vendendo (reais, ações na Bolsa, títulos da dívida do
governo) do que comprando –se tivesse só gente vendendo, aliás, veríamos o
colapso imediato. Na semana seguinte ao “desembarque” (do paniquito em Bolsa e
juros), havia corretora de bancão dizendo que a Bolsa tinha ficado “barata”
(para aplicações de curto prazo).
Parte desse descrédito do Brasil e seus
ativos financeiros é provocada pelo governo de Jair Bolsonaro? Sim. Tem a ver
com a promessa de Bolsonaro de dar um golpe ou com a eleição de 2022? Não
necessariamente, pelo menos não agora. Tem a ver com a administração incompetente,
a propensão à demagogia econômica, ao
risco do “fura teto”, com a incompetência em propor e fazer tramitar até as
“reformas” (liberais)? Sim. Um “manifesto” contra os arreganhos autoritários de
Bolsonaro vai mudar a administração da economia (ou seus signatários principais
estavam pensando nisso)? Não (quer dizer, é muito improvável que mude).
Há óbvia e contínua pressão
político-ideológica para dominar o debate econômico, em particular, postos de
governo, a conformação da burocracia do Estado e de suas agências? Sim. Tais
ações se dão por meio de um comitê, ou coisa que o valha, um quase partido?
Não. Trata-se, digamos, de um grande partido informal, de ação fragmentada,
dispersa e eficaz por outros meios (chamava-se antigamente de “dominação”).
Muita gente de fato ficou furiosa com a
reforma do Imposto de Renda de Guedes-Bolsonaro, com a cobrança de dividendos,
com o aumento de carga sobre certos setores, com a incompetência espantosa
desse projeto —a Febraban ou os bancos inclusive, mas não apenas. Isso pode ter
levado gente e associações a apoiarem o “manifesto”, mas é motivo marginal.
Muita gente, os “manifestantes” originais em particular, pretendiam dizer
apenas que não vão aceitar ataque contra a democracia ou eleições. Outros
pegaram o bonde quando viram grandes associações pilotando o “manifesto”, pois
muitos estão apenas assustados com o clima de desordem geral do país (entre
eles a maioria que, até agora, não se importava com as barbaridades
bolsonaristas). Quase todos não queriam entrar em conflito com o governo, até
porque temem represálias político-econômicas ou também não querem colocar empada
na única candidatura por ora realmente existente de oposição, a de Lula da
Silva.
O movimento era uma raridade, de fato:
juntava centenas de associações, todas as principais, de setores diferentes,
com interesses econômicos e políticos muito diversos, em torno de um documento
que serviria para dizer a Jair Bolsonaro e companhia que eles são minoritários
no projeto golpista. Mesmo ameno ao ponto de ser homeopático, mesmo
distribuindo entre “os Poderes” responsabilidade pela confusão, mesmo que
Bolsonaro fosse o sujeito oculto, era esse o denominador comum do “movimento”,
que pode ter vários motivos, a depender do interesse circunstancial do
signatário. Mas não é “coalizão”, muito menos frente política e tem precários
contatos com o mundo político de fato.
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A primeira versão do manifesto:
“As entidades signatárias deste documento
veem com grande preocupação a escalada de tensões entre atores políticos, o que
coloca em risco um dos pressupostos para a funcionalidade da democracia: a
harmonia entre os poderes da República.
Esse cenário mais hostil tem potencial para
gerar graves impactos na nossa economia. Por isso, a sociedade civil anseia e o
momento exige de todos serenidade, diálogo, pacificação política, estabilidade
institucional e, sobretudo, foco em ações e medidas urgentes e necessárias para
que o país supere, de forma duradoura, os desafios hoje postos à recuperação da
economia e à superação das carências sociais que atingem amplos segmentos da
população.
Para o fortalecimento da democracia, é imprescindível que cada ator político, que desempenha os papéis da mais alta relevância e responsabilidade sobre os destinos do país, aja com racionalidade para distensionar o ambiente político e dissipar incertezas quanto à nossa capacidade de, mesmo nas diferenças, conduzirmos adequadamente as questões do presente, resgatando expectativas quanto ao nosso futuro.”
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