O Globo
Não começou no governo Jair Bolsonaro a
discussão a respeito da adoção da tese do marco temporal como vinculante para a
demarcação de terras indígenas, decisão fundamental para o futuro do Brasil
que, de tão intrincada, o Supremo Tribunal Federal pode de novo adiar nesta
quarta-feira.
Mas foi neste governo que esse tema virou
mais uma daquelas bandeiras que o presidente brande para se contrapor de forma
sempre brutal a qualquer direito de minorias com que não tem qualquer empatia
nem qualquer compromisso como governante.
O marco temporal virou um passaporte para
Bolsonaro impulsionar uma política de subjugar os povos indígenas e lhes tirar
direitos, e é essa a dimensão que o julgamento do STF adquiriu, com a maior
mobilização pela vida já organizada em Brasília por representantes de várias
etnias.
Foi ainda no julgamento da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, concluída em 2009, que a tese do marco temporal ganhou corpo, incluída entre 19 condicionantes apresentadas pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito ao voto histórico de Carlos Ayres Britto que reconhecia a demarcação contínua da área no Estado de Roraima.
Um parecer da Advocacia-Geral da União, no
governo Michel Temer, vinculou toda e qualquer demarcação de terra indígena
àquelas condicionantes.
Em resumo, a tese propugna que o direito às
terras indígenas assegurado pela Constituição teria a própria promulgação da
Carta como marco. Ou seja: para ter assegurado seu direito inalienável às
terras, os índios teriam de comprovar estar nelas antes de 1988.
Os defensores dos povos indígenas
argumentam que a relação desses povos originários com seu território vai muito
além dessa definição arbitrária de tempo. Trata-se de uma “relação cosmológica,
antropológica”, como sustentou Samara Pataxó, coordenadora jurídica da
Articulação dos Povos Indígenas em recente entrevista à jornalista Renata Lo
Prete.
Mais: sustentam que, ao tornar obrigatória
a tese do marco temporal, o Supremo ensejará uma extrema judicialização de
reservas já demarcadas e a paralisação de novas demarcações (desejo confesso,
sempre repetido por Bolsonaro), além de potencializar os conflitos violentos em
áreas em disputa.
O voto do relator do julgamento, Edson
Fachin, reverte a decisão de 2009 e a jurisprudência, que tem validado o marco
temporal como critério.
No mesmo sentido, de amplo reconhecimento
ao direito incondicional dos povos originários às suas terras, vai o texto do
artigo 231 da Constituição. Ali não se fala que aqueles direitos valem apenas
para quem já está nas terras. Da mesma forma, várias das condicionantes de
Menezes Direito abraçadas pelo parecer da AGU não resistem a ser cotejadas com
o texto da Constituição.
Uma pena que, na prorrogação de um
julgamento histórico como o de Raposa Serra do Sol, os ministros tenham
concordado com um adendo que acabou por relativizar aquilo que eles mesmos
reconheceram com tanta altivez.
Ao celebrar a vitória da demarcação contínua
daquele território (e não em ilhas, como era a tese da ocasião para tentar
retirar direitos dos índios), o então ministro celebrou que a Corte estivesse
dando “o mais sonoro e rotundo não ao etnocídio”. De fato. Mas, ao aquiescer
com tantas e tão amplas condicionantes, aquela formação do STF nos trouxe até
este novo impasse.
O provável adiamento não retira a polêmica
da sala, nem fará com que os indígenas se desmobilizem. Cabe ao STF analisar o
caso no contexto de tantas e tão graves ameaças ao direito à existência dessas
etnias e de minorias em geral no Brasil. Uma tecnicalidade não pode servir de
aval para que se cometam novas e possivelmente cabais violências contra os
índios no Brasil, que este governo enxerga como estorvos ao desenvolvimento, a ser
removidos.
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