O Globo
Um presidente da República passeando de jet
ski num raro balneário onde ainda é popular, enquanto no quarto colégio
eleitoral do país 670 mil pessoas sofrem efeitos de inundações que já mataram
24, serviria ao roteiro da sátira distópica que mobiliza as redes sociais desde
o Natal. Infortúnio nosso, não é cinema. São evidências do negacionismo, da
indiferença, da necropolítica no Brasil sob Jair Bolsonaro. É ele o mandatário
capaz de sepultar uma bem-sucedida política social para tirar proveito
eleitoral e mais desidratá-la que ampliá-la. É o líder político que sabota
vacinação de crianças. É o chefe do Executivo federal que visita parque de
diversões e rejeita ajuda humanitária de adversário ideológico, quando
compatriotas garimpam bens e memórias de escombros.
Tal como Donald Trump nos Estados Unidos, a gestão Bolsonaro lançou o Brasil numa escalada de mentira, incompetência e extremismo digna do cinema catástrofe. Daí a repercussão nos dois países do último longa de Adam McKay, que reúne elenco estelar e foi lançado pela Netflix na véspera de Natal. “Não olhe para cima” é uma sátira sem sutileza, bem mastigadinha. Não doura a pílula na crítica feroz à negação à ciência, ao populismo dos líderes de extrema direita, à espetacularização da notícia, ao culto às celebridades, mesmo tendo DNA hollywoodiano.
O filme, que tem no elenco nomes como
Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Timothée Chalamet, Cate Blanchett, Mark
Rylance e a insuperável Meryl Streep, faz do desespero humor, mas resvala em
desfecho dramático romantizado, muito típico do audiovisual americano. Gosto da
obra, entre outras razões por escancarar com tintas fortes, óbvias, a bizarrice
de nosso tempo, mas me frustrei com o terço final. É obra importante, com
ressalvas.
“Não olhe para cima” parte de um fenômeno
astronômico — a aproximação em seis meses e 14 dias daquele meteoro gigantesco
por que andamos clamando para escapar do desgoverno — para atacar o
negacionismo. É sobre a destruição da Terra vinda do espaço, mas poderia ser
pela pandemia da Covid-19 ou pela urgência climática, que igualmente nos
ameaçam e são postas em dúvida por ingenuidade, omissão ou má-fé. Na tela,
ninguém é poupado. A responsabilização vai da política à mídia, do show
business aos bilionários da tecnologia, do capitalismo desmedido à ignorância
ativa da gente comum.
Lawrence e DiCaprio encarnam os cientistas
Kate Dibiasky e Randall Mindy, que, respectivamente, descobre e anuncia o
evento final. Procuram autoridades, da Nasa ao Pentágono, vão à Casa Branca
—comandada por uma presidente (Streep no papel de Janie Orlean) caricatural e
oportunista como Trump — e a emissoras de TV. São acolhidos e desacreditados,
seduzidos e esculachados, deglutidos e cuspidos pelo poder político, pela
mídia, por “homens de bem”. Qualquer semelhança… À trama ficcional, McKay
adiciona imagens documentais de pessoas, natureza e países, numa tentativa de
mostrar que há planeta fora dos EUA.
Do hiper-realismo do assunto principal,
saltam reflexões secundárias. A assimetria de gênero que faz da jovem cientista
a figura ridicularizada e silenciada (por suas roupas, idade, conhecimento e
ênfase), enquanto o professor (homem, branco, maduro) é içado a referência
confiável — até surtar. No filme como na vida.
Particularmente, “Não olhe para cima” me
chamou a atenção também não pelo que denuncia da vida real, mas pelo que repete
da produção audiovisual convencional, a solidão das pessoas negras. Tyler Perry
faz o âncora Jack Bremmer, companheiro de bancada da Brie Evantee de Blanchett,
sobre o qual nada se sabe. Rob Morgan encarna o Dr. Teddy Oglethorpe, diretor
da Nasa que se une à dupla de protagonistas na empreitada de salvar o mundo da
destruição final. No roteiro, que, a exemplo da tradição hollywoodiana, busca
saídas românticas completamente dispensáveis para os dois cientistas, o homem
negro se despede sem família nem afeto, apenas agregado aos brancos.
À beira de 2022, busca por
representatividade pavimentada, e o audiovisual ainda repete os estereótipos
que, nas entrelinhas, sonegam aos negros relações familiares e afeto. O
afrofuturismo, movimento estético, filosófico e artístico, nasceu da
constatação de apagamento de pessoas negras na ficção científica, a começar
pela animação “Os Jetsons”.
As imagens de controle da teoria crítica de
Patricia Hill Collins denunciam a representação recorrente de mulheres negras
como empregadas domésticas que gravitam em torno das famílias brancas. Não têm
casa, família, cenários, clãs. Existem para servir. Encarnam papéis que
confinam, limitam, desumanizam. “Não olhe para cima” também fez isso. Faltou
olhar para os lados.
Feliz Ano-Novo. Que 2022 não nos seja tão
pesado.
Um comentário:
essa mulata cansa.
MAM
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