sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Flávia Oliveira: Importante, mas com ressalvas

O Globo

Um presidente da República passeando de jet ski num raro balneário onde ainda é popular, enquanto no quarto colégio eleitoral do país 670 mil pessoas sofrem efeitos de inundações que já mataram 24, serviria ao roteiro da sátira distópica que mobiliza as redes sociais desde o Natal. Infortúnio nosso, não é cinema. São evidências do negacionismo, da indiferença, da necropolítica no Brasil sob Jair Bolsonaro. É ele o mandatário capaz de sepultar uma bem-sucedida política social para tirar proveito eleitoral e mais desidratá-la que ampliá-la. É o líder político que sabota vacinação de crianças. É o chefe do Executivo federal que visita parque de diversões e rejeita ajuda humanitária de adversário ideológico, quando compatriotas garimpam bens e memórias de escombros.

Tal como Donald Trump nos Estados Unidos, a gestão Bolsonaro lançou o Brasil numa escalada de mentira, incompetência e extremismo digna do cinema catástrofe. Daí a repercussão nos dois países do último longa de Adam McKay, que reúne elenco estelar e foi lançado pela Netflix na véspera de Natal. “Não olhe para cima” é uma sátira sem sutileza, bem mastigadinha. Não doura a pílula na crítica feroz à negação à ciência, ao populismo dos líderes de extrema direita, à espetacularização da notícia, ao culto às celebridades, mesmo tendo DNA hollywoodiano.

O filme, que tem no elenco nomes como Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Timothée Chalamet, Cate Blanchett, Mark Rylance e a insuperável Meryl Streep, faz do desespero humor, mas resvala em desfecho dramático romantizado, muito típico do audiovisual americano. Gosto da obra, entre outras razões por escancarar com tintas fortes, óbvias, a bizarrice de nosso tempo, mas me frustrei com o terço final. É obra importante, com ressalvas.

“Não olhe para cima” parte de um fenômeno astronômico — a aproximação em seis meses e 14 dias daquele meteoro gigantesco por que andamos clamando para escapar do desgoverno — para atacar o negacionismo. É sobre a destruição da Terra vinda do espaço, mas poderia ser pela pandemia da Covid-19 ou pela urgência climática, que igualmente nos ameaçam e são postas em dúvida por ingenuidade, omissão ou má-fé. Na tela, ninguém é poupado. A responsabilização vai da política à mídia, do show business aos bilionários da tecnologia, do capitalismo desmedido à ignorância ativa da gente comum.

Lawrence e DiCaprio encarnam os cientistas Kate Dibiasky e Randall Mindy, que, respectivamente, descobre e anuncia o evento final. Procuram autoridades, da Nasa ao Pentágono, vão à Casa Branca —comandada por uma presidente (Streep no papel de Janie Orlean) caricatural e oportunista como Trump — e a emissoras de TV. São acolhidos e desacreditados, seduzidos e esculachados, deglutidos e cuspidos pelo poder político, pela mídia, por “homens de bem”. Qualquer semelhança… À trama ficcional, McKay adiciona imagens documentais de pessoas, natureza e países, numa tentativa de mostrar que há planeta fora dos EUA.

Do hiper-realismo do assunto principal, saltam reflexões secundárias. A assimetria de gênero que faz da jovem cientista a figura ridicularizada e silenciada (por suas roupas, idade, conhecimento e ênfase), enquanto o professor (homem, branco, maduro) é içado a referência confiável — até surtar. No filme como na vida.

Particularmente, “Não olhe para cima” me chamou a atenção também não pelo que denuncia da vida real, mas pelo que repete da produção audiovisual convencional, a solidão das pessoas negras. Tyler Perry faz o âncora Jack Bremmer, companheiro de bancada da Brie Evantee de Blanchett, sobre o qual nada se sabe. Rob Morgan encarna o Dr. Teddy Oglethorpe, diretor da Nasa que se une à dupla de protagonistas na empreitada de salvar o mundo da destruição final. No roteiro, que, a exemplo da tradição hollywoodiana, busca saídas românticas completamente dispensáveis para os dois cientistas, o homem negro se despede sem família nem afeto, apenas agregado aos brancos.

À beira de 2022, busca por representatividade pavimentada, e o audiovisual ainda repete os estereótipos que, nas entrelinhas, sonegam aos negros relações familiares e afeto. O afrofuturismo, movimento estético, filosófico e artístico, nasceu da constatação de apagamento de pessoas negras na ficção científica, a começar pela animação “Os Jetsons”.

As imagens de controle da teoria crítica de Patricia Hill Collins denunciam a representação recorrente de mulheres negras como empregadas domésticas que gravitam em torno das famílias brancas. Não têm casa, família, cenários, clãs. Existem para servir. Encarnam papéis que confinam, limitam, desumanizam. “Não olhe para cima” também fez isso. Faltou olhar para os lados.

Feliz Ano-Novo. Que 2022 não nos seja tão pesado.

 

Um comentário:

marcos disse...

essa mulata cansa.

MAM