sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Poesia | João Cabral de Melo Neto: Chuvas do Recife (Trecho)

Sei que a chuva não quebra osso
que há defesas contra seu soco.
Mas sob chuva tropical
me sinto ante o Juízo Final
em que não creio mas me volta
como o descreviam na escola:
mesmo se ela cai sem trovão
demótica em sua expressão.

No Recife, se a chuva chove,
a chuva é a desculpa mais nobre
para não se ir, não se fazer,
para trancar-se no não ser.
Mais que corda, é chuva em sabres
que aprisiona o dia em grades,
e mesmo que tenha gazuas
da grade viva, evita a rua.

(...)
Há no Recife uma outra chuva
(embora rara) rala, miúda
Não como a chuva da chuvada,
que cai, agride, e é pedra d'água,
passa em peneira esta chuva,
não traz balas, não tranca ruas:
mas faz também ficar em casa,
quem pode, antevivendo o nada.

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