Blog do Noblat / Metrópoles
Há décadas, milhões de brasileiros,
sobretudo do Nordeste, são forçados a abandonarem suas casas, em busca de
sobrevivência em outras partes
Há 30 dias, assistimos perplexos e
horrorizados as imagens das consequências das bombas jogadas por Putin na
Ucrânia. Choramos e nos indignamos com esta violência que destrói prédios,
força migração, mata civis, inclusive crianças e mulheres. Nem todos, porém,
lembramos da nossa Ucrânia silenciosa e permanente ao nosso redor.
Há décadas, milhões de brasileiros,
sobretudo do Nordeste, são forçados a abandonarem suas casas, em busca de
sobrevivência em outras partes. As casas não serão destruídas por bombas e
mísseis, mas já eram tão degradadas que pareciam bombardeadas por dentro,
durante a própria construção precária. Nossos migrantes são chamados de pau de
arara, mas de fato são nossos ucranianos.
Vinte milhões destes ucranianos brasileiros sofrem hoje a violência da fome. Dormem sem comer, com a geladeira e armários vazios. E ainda sofrem a violência de acordarem sem ter o que comer, mas assistindo pela televisão programas de conversas ao redor de mesa farta de comida. Depois, com os olhos ávidos e os estômagos vazios, assistem programas de culinária e gastronomia, que ensinam como fazer comidas com suculentos filés e apetitosas sobremesas.
Nossa Ucrânia é violenta ao exportar comida
e deixar nosso povo como fome, e ainda tripudiar ou ignorar quem passa fome
assistindo a abundância e até o desperdício de comida transmitido pela
televisão. Esta realidade é violenta contra as mães que têm seus filhos com
fome, e sobre as crianças que não entendem o porque de serem excluídas. As
crianças da outra Ucrânia pelo menos sabem que a culpa é da guerra, da Russia,
de Putin. À violência da fome, soma-se a violência do espetáculo da culinária
tão perto e tão longe de suas pobres casas, sem o risco de mísseis e explosões,
para explicar porque são tão despossuídos.
Os ucranianos europeus são todos migrantes
e despossuidos, a violência é sobre todos, os ucranianos brasileiros sabem que
as bombas e as necessidades pesam apenas sobre alguns escolhidos para não
sofrerem. Protegidos contra os putins brasileiros. A violência é dupla: pela
pobreza que sofrem e pela percepção da riqueza ao lado. Os abrigoa de Kiev são
trágicos, mas são democráticos. E são passageiros
Nossas crianças vivem em uma Ucrânia
apartada, silenciosa e permanente, não menos malvada e com menos explicação. Em
alguns bairros de algumas cidades, sem uma guerra que explique, nossas crianças
são vítimas de balas perdidas, como se estivessem ao redor de Kiev.
Se conseguem chegar, suas escolas estão
melhores do que as ucranianas destruídas por bombas. Mas as crianças da Ucrânia
têm a esperança de que a guerra vai um dia terminar e elas voltarão a suas
escolas bonitas, enquanto às nossas continuarão degradadas, semi-escolas,
permanentemente. Não por bombas momentâneas enviadas por um autocrata
estrangeiro irresponsável e perverso, mas pela perversa omissão histórica, como
nossos governantes tratam as crianças pobres do Brasil. Temos uma Ucrânia
brasileira e temos putins brasileiros.
*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro
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