domingo, 27 de março de 2022

Cristovam Buarque*: Os putins brasileiros

Blog do Noblat / Metrópoles

Há décadas, milhões de brasileiros, sobretudo do Nordeste, são forçados a abandonarem suas casas, em busca de sobrevivência em outras partes

Há 30 dias, assistimos perplexos e horrorizados as imagens das consequências das bombas jogadas por Putin na Ucrânia. Choramos e nos indignamos com esta violência que destrói prédios, força migração, mata civis, inclusive crianças e mulheres. Nem todos, porém, lembramos da nossa Ucrânia silenciosa e permanente ao nosso redor.

Há décadas, milhões de brasileiros, sobretudo do Nordeste, são forçados a abandonarem suas casas, em busca de sobrevivência em outras partes. As casas não serão destruídas por bombas e mísseis, mas já eram tão degradadas que pareciam bombardeadas por dentro, durante a própria construção precária. Nossos migrantes são chamados de pau de arara, mas de fato são nossos ucranianos.

Vinte milhões destes ucranianos brasileiros sofrem hoje a violência da fome. Dormem sem comer, com a geladeira e armários vazios. E ainda sofrem a violência de acordarem sem ter o que comer, mas assistindo pela televisão programas de conversas ao redor de mesa farta de comida. Depois, com os olhos ávidos e os estômagos vazios, assistem programas de culinária e gastronomia, que ensinam como fazer comidas com suculentos filés e apetitosas sobremesas.

Nossa Ucrânia é violenta ao exportar comida e deixar nosso povo como fome, e ainda tripudiar ou ignorar quem passa fome assistindo a abundância e até o desperdício de comida transmitido pela televisão. Esta realidade é violenta contra as mães que têm seus filhos com fome, e sobre as crianças que não entendem o porque de serem excluídas. As crianças da outra Ucrânia pelo menos sabem que a culpa é da guerra, da Russia, de Putin. À violência da fome, soma-se a violência do espetáculo da culinária tão perto e tão longe de suas pobres casas, sem o risco de mísseis e explosões, para explicar porque são tão despossuídos.

Os ucranianos europeus são todos migrantes e despossuidos, a violência é sobre todos, os ucranianos brasileiros sabem que as bombas e as necessidades pesam apenas sobre alguns escolhidos para não sofrerem. Protegidos contra os putins brasileiros. A violência é dupla: pela pobreza que sofrem e pela percepção da riqueza ao lado. Os abrigoa de Kiev são trágicos, mas são democráticos. E são passageiros

Nossas crianças vivem em uma Ucrânia apartada, silenciosa e permanente, não menos malvada e com menos explicação. Em alguns bairros de algumas cidades, sem uma guerra que explique, nossas crianças são vítimas de balas perdidas, como se estivessem ao redor de Kiev.

Se conseguem chegar, suas escolas estão melhores do que as ucranianas destruídas por bombas. Mas as crianças da Ucrânia têm a esperança de que a guerra vai um dia terminar e elas voltarão a suas escolas bonitas, enquanto às nossas continuarão degradadas, semi-escolas, permanentemente. Não por bombas momentâneas enviadas por um autocrata estrangeiro irresponsável e perverso, mas pela perversa omissão histórica, como nossos governantes tratam as crianças pobres do Brasil. Temos uma Ucrânia brasileira e temos putins brasileiros.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro

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