domingo, 27 de março de 2022

Vinicius Torres Freire: Brasil vai comer poeira do deserto

Folha de S. Paulo

Sem acordo amplo, país corre risco de nova década de ruína econômica e democrática

A gente faz umas contas a fim de ver em que pé estarão a inflação e os preços da comida lá pelo fim da campanha eleitoral. A carestia talvez acabe com alguns votos de Jair Bolsonaro, se especula.

O IPCA vai passar de 12% ao ano em abril (está em 10,5%)? Ainda além de 8% em setembro? O dólar vai ajudar? A gente discute se uns décimos de porcentagem de miséria extra na vida do povo miúdo vão fazer diferença política.

Pode ser, mas a numeralha da planilha começa a parecer ridícula. Décimos do IPCA podem parar Bolsonaro? A isso se reduz a conversa? Ou a discutir se tantos tipos do centrão vão pular da barca do inferno para a candidatura tal ou qual? Se a prensa no Telegram pode colocar areia na máquina do ódio bolsonarista?

É assim que a oposição espera parar o tipo que, reeleito, promete lotar o Supremo com mais cúmplices, com mais desses cafonas grotescos, iletrados e adeptos de algum tipo de teocracia? São tipos que vão passar o pano jurídico capaz de nos transformar em uma espécie de Hungria misturada com Filipinas e Turquia, em convergência econômica para Serra Leoa, como disse um amigo, o "catch down" final. Talvez tenhamos militares aboletados de vez no comando do Estado e da economia, como na Venezuela ou na Putinlândia.

É gente que vai transformar o país em território livre da traficância de armas. Os decretos bolsonaristas aumentam a oferta. Os trabucos podem parar no arsenal de barões das favelas feudalizadas pela milícia, fuzis que abastecem os assassinos de Marielles e de pretos em geral. Que talvez armem batalhões de nazistas. Na Ucrânia, se chamaram de Batalhão Azov. E aqui? Divisão Rio das Pedras? Regimento Adriano da Nóbrega, o miliciano e assassino condecorado e elogiado pelos Bolsonaro?

Então é essa a expectativa política? Um Boletim Focus com estimativas econômicas pioradas vai parar o esquemão que patrocina ou incentiva o agro ogro, a grilagem, o garimpo e as facções criminosas?

Essa é a malta que quer arrasar a Amazônia até um ponto sem volta e matar ou empestear o que restou dos indígenas. Vão dizimar a floresta até que a chuva pare de cair, de Rondônia até o Paraná. Até que São Paulo torre de sede. Até que os cerrados da soja passem a produzir apenas poeira, como o Saara, que por vezes despeja pó laranja sobre a Suíça. Se pelo menos fôssemos a Suíça.

Peste, promessa de golpe, mentira, indecência, rachadinha ou inflação não bastaram para mudar a ideia do terço do país que ainda prefere reeleger Bolsonaro. É possível que muitos nem se importem com o Bolsolão do MEC, o escândalo dos vendilhões do templo recomendados pelo presidente.

A oposição ou, vá lá, os candidatos que querem a cadeira de Bolsonaro, se comporta como se vivêssemos em um "país normal", com "instituições funcionando", como dizem politólogos colaboracionistas. Ocupam-se de suas campanhazinhas.

Ainda que tenham a gloriazinha da vitória, no governo precisarão de um acordo nacional a fim de evitar que o país entre na segunda década de ruína econômica, o que poderia redundar em tumultos e ataques mais bem-sucedidos contra a democracia.

Ter um projeto de mudança viável, na verdade de mera reconstrução, depende de acordo amplo; depende da recusa da besteirada econômica demagógica e da avacalhação da democracia que provocaram este desastre.

Propaganda e sorte até podem vencer a eleição. Mas não haverá governo sem acordo e mudanças profundas, dessas de deixar a esquerda perplexa e a direita indignada, como disse um outro picareta criminoso que a elite gostou de levar ao poder.

 

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