O Globo
O único momento em que Jesus se enfureceu,
na narrativa feita nos Evangelhos, foi quando ele encontrou os “vendilhões do
templo”. O que tem acontecido no Brasil é mais do que o comércio na igreja.
Parece o comércio da Igreja. Mercadeja-se em nome de Deus para os fins mais
escusos. O voto dos fiéis é prometido como moeda de troca para que seja
franqueado o acesso aos negócios do Estado. O uso da religião na política
durante o governo Bolsonaro tem ofendido tanto os princípios religiosos quanto
o ordenamento da República laica que os brasileiros decidiram na Constituição.
Nada contra a fé evangélica, tudo contra a sua manipulação por pastores para
atingir objetivos de poder e dinheiro.
Os fatos que a imprensa revelou nos últimos dias são estarrecedores. O fio condutor que leva os eventos ao Palácio do Planalto está explícito. No dia 8 de março, o presidente Bolsonaro disse publicamente diante de uma plateia de pastores: “Eu levo a nação para o lado que os senhores assim o desejarem.” Isso é confissão pública de afronta ao princípio constitucional do Estado laico. Nesta mesma fala ele usou expressões próprias dos evangélicos. Falou de si mesmo como “escolhido” e pediu que atendessem ao “chamamento de 2022”.
O fio que liga o presidente ao escândalo
foi tecido pelo próprio ministro Milton Ribeiro. Ele recebeu inicialmente os
pastores Arilton Moura e Gilmar Santos a mando do presidente. As revelações dos
últimos dias nos jornais “Estado de S. Paulo” e “Folha de S. Paulo” são
impressionantes. Esses dois pastores formam um gabinete paralelo, administram
agenda interna, vendem acesso e pedem propina para a liberação de dinheiro do
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. No áudio que a “Folha” divulgou,
o próprio ministro diz que dá prioridade aos “amigos do pastor Gilmar” e diz
que a contrapartida não era segredo, era a “construção de igrejas”. Em
entrevista ao “Estado”, o prefeito Gilberto Braga, da cidade maranhense de José
Domingues, diz que o pastor Arilton pediu R$ 15 mil de sinal e um quilo de ouro
para liberar recursos de um fundo público. Ao todo, órgãos de imprensa já
ouviram dez prefeitos que contaram cenas em que foram abordados dessa forma. O
GLOBO ainda revelou que há duas semanas Gilmar Santos investiu R$ 450 mil para
abrir duas empresas no mesmo dia, com endereço da igreja.
O ministro disse que comunicou à CGU
suspeitas que chegaram a ele sobre o comportamento dos pastores. Mas eles
continuaram atuando no Ministério. A ministra Cármen Lúcia autorizou a
investigação dos fatos, mas lembrou à Procuradoria-Geral da República (PGR) que
todos têm que ser investigados. Mais uma vez, o PGR tenta blindar o presidente.
Tudo isso é de uma gravidade extrema. A
lista dos crimes que teriam sido cometidos, caso toda essa abundância de
evidências se confirme, vai de corrupção passiva e ativa, usurpação de função
pública com a conivência de autoridades, advocacia administrativa e
descumprimento do preceito constitucional do Estado laico.
Esse rol de desvios acontece em um
ministério que foi anulado pelo governo Bolsonaro. Nenhum dos três ministros da
Educação cumpriu seu papel de coordenação da educação brasileira, os órgãos do
MEC foram aparelhados e tiveram constantes trocas de titulares, durante o pior
momento da pandemia, o órgão foi omisso. E, agora se vê, virou balcão para as
mais estranhas negociatas.
O ministro do STF Edson Fachin foi
derrotado quando propôs em 2020 que o “abuso do poder religioso” fosse punido
com a perda de mandato. Mas essa é uma questão que a democracia brasileira tem
que enfrentar. Além de combater crimes como os que foram flagrados dentro do
Ministério da Educação, é preciso proteger o direito de voto livre da pessoa
que, por professar uma religião, acaba vulnerável à pressão de líderes que
transformam púlpitos em palanques e usam a fé para induzir o voto.
As pesquisas mostram que os eleitores evangélicos estão divididos entre os dois principais candidatos, apesar da pressão dos dirigentes de muitas denominações em favor de Bolsonaro. Nos próximos meses veremos uma escalada das pressões e manipulações por parte de pastores e “donos” das igrejas para tentar construir verdadeiros currais eleitorais, como antigamente faziam os coronéis. Tudo o que aconteceu no Ministério da Educação precisa ser investigado e os eventuais culpados, punidos, mas como proteger a democracia desse abuso de poder de pessoas que se apresentam como se falassem em nome de Deus?
Nenhum comentário:
Postar um comentário