O
governo tem sido cobrado a apresentar um plano para celebrar o bicentenário da
Independência. Talvez seja melhor deixar a ideia para lá. Uma campanha da
Secretaria Especial da Cultura expõe a visão bolsonarista da efeméride. É uma
visão caricata, apoiada em patriotadas e mistificações.
“A
Independência do Brasil foi conquistada com um brado. Nossa liberdade,
anunciada com uma exclamação”, derrama-se o site oficial. “Na bravura, que arde
como brasa, se revigora o espírito patriótico que, um dia, apontando o céu, nos
bradou a liberdade”, prossegue.
O portal também carrega nas tintas ao descrever Pedro I. O herdeiro da Coroa portuguesa emerge como um herói sem defeitos. “Um jovem príncipe, do alto de seu cavalo, ergueu sua espada. Refletindo nela a luz do sol, ao som das águas do Ipiranga, ecoou a voz em forte grito. Pela força de sua coragem, derrotou os que nos aprisionavam. Com a ousadia de sua afronta, fez soberana a nossa nação”, exalta o texto chapa-branca.
O
palavrório falsifica a história ao narrar uma Independência fictícia. A cena
épica só existiu na imaginação de Pedro Américo, autor do quadro “Independência
ou Morte”, de 1888. O pintor plagiou uma tela do francês Ernest Meissonier, que
retratou Napoleão na batalha de Friedland. Segundo testemunhos da época, o
brado tupiniquim não foi tão retumbante. O príncipe estava abatido por uma
infecção intestinal, vestia roupas simples e se equilibrava sobre uma mula.
“A
tentativa de construir um herói idealizado, com sua espada flamejante a
libertar um povo, certamente não se destina a quem tenha algum conhecimento da
História do Brasil”, critica a historiadora Isabel Lustosa. “O relato
romantizado segue o roteiro da construção do mito do herói. Esses exageros não
contribuem para entender o que foi a Independência”, acrescenta a autora do
livro “D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter”.
Entender
as contradições da história não é o objetivo das cavalgaduras federais.
Monarquistas, olavistas e generais de pijama preferem simplificar o passado em
narrativas ufanistas. A fórmula já foi usada pela ditadura em 1972, quando a
Independência fez 150 anos.
Os
militares promoveram uma “gigantesca e bem-sucedida operação de apropriação do
acontecimento histórico”, escreve a historiadora Heloisa Starling na última
edição da revista Serrote. A propaganda exaltava o regime e estimulava o orgulho
patriótico. Num lance espetaculoso, os restos mortais do imperador foram
trazidos de Portugal e sepultados novamente no Museu do Ipiranga.
O
governo Médici também recrutou artistas populares, como Roberto Carlos, para
vender a história oficial. “É isso aí, bicho. Vai ter muita música, muita
alegria. Porque vai ser a festa de paz e amor e todo brasileiro vai participar
cantando a música de maior sucesso no país: Ouviram do Ipiranga as margens
plácidas”, cantarolou o Rei, em gravação resgatada pela professora da UFMG.
Bolsonaro conhece o potencial do Sete de Setembro para mobilizar o eleitorado conservador. No ano passado, usou a data para promover atos golpistas. Ao convocá-los, subiu num cavalo e prometeu liderar uma “nova Independência do Brasil”. Em 2022, o capitão tentará usar o bicentenário como arma de campanha. A efeméride será celebrada a 25 dias do primeiro turno. O ufanismo do portal do governo é uma amostra do que vem por aí.
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