O Globo
Em outubro de 2020, em plena campanha
eleitoral americana, uma reportagem do jornal New York Post sugerindo que o
filho de Joe Biden fazia tráfico de influência na Ucrânia foi impedida de ser
compartilhada no Twitter e sua distribuição foi reduzida no Facebook. A
reportagem se baseava em e-mails encontrados num laptop de Hunter Biden, que
havia sido deixado para conserto e não foi buscado de volta.
A reportagem foi considerada sem respaldo
em fatos e, por isso, sua difusão foi bloqueada nas mídias sociais. Agora, mais
de um ano depois, o New York Times, o mais prestigioso jornal americano,
reconheceu a autenticidade dos e-mails do filho do presidente. Com esse
reconhecimento, ficou evidente a arbitrariedade das plataformas, cuja ação pode
ter surtido efeitos eleitorais.
Mais recentemente, outras medidas questionáveis tomadas pelas plataformas no contexto da guerra na Ucrânia mostram que elas têm usado com muita discricionariedade seu poder de moderação, em desrespeito ao princípio da neutralidade. Não importa se a parte prejudicada — Trump ou Rússia — é boa ou ruim. Supressão de ideias no debate público, em desrespeito às regras, é censura, censura privada. E não existe censura do bem.
No caso dos e-mails de Hunter Biden, a ação
mais extrema foi tomada pelo Twitter. Não podendo alegar que os e-mails eram
forjados — o que demandaria apuração por uma agência de checagem —, a
plataforma alegou que a reportagem do Post era “prejudicial” porque violava a
regra que impede compartilhar material hackeado. Só que não se tratava de
material furtado, mas de uma reportagem a partir de informação vazada. Se toda
reportagem com dados vazados fosse tratada como furto, não teria sido possível
compartilhar as reportagens do New York Times com os telegramas diplomáticos
vazados pelo WikiLeaks ou as do GLOBO com as conversas de procuradores da Lava-Jato vazadas pelo site
The Intercept.
A postura do Facebook foi mais comedida. A
empresa diminuiu preliminarmente a distribuição dos compartilhamentos do Post
até que a reportagem fosse verificada por uma agência de checagem. A medida
seria correta se não tivesse sido excepcional. Uma reportagem do jornal inglês
The Guardian mostrou que deveria ter sido iniciativa de uma agência de checagem
ou motivada por uma denúncia, mas o Facebook a tomou, temendo que a notícia do
Post fosse instrumento de uma campanha de desinformação da Rússia.
Agora, com a guerra na Ucrânia, as medidas
discricionárias de moderação das plataformas se ampliaram mais uma vez,
mostrando que às vezes são usadas com claros propósitos políticos.
A Alphabet (Google) bloqueou o acesso na
Europa aos canais de YouTube das agências de notícia russas Russian Today e
Sputnik. Retirou os aplicativos das duas agências da loja Google Play, “para
barrar a difusão e romper as campanhas de desinformação on-line”, no que foi
seguida por Apple e Microsoft. O Facebook impediu o compartilhamento de
notícias desses sites e mudou sua política de discurso de ódio para permitir
expressar o desejo de matar Putin ou soldados russos, além de permitir elogios
ao Batalhão Azov, um grupo paramilitar com neonazistas que combate pelo governo
da Ucrânia. O Twitter só se uniu aos demais quando foi forçado, para cumprir
sanções da Comissão Europeia.
Todas essas medidas foram tomadas de
maneira arbitrária. Não deveria ser relevante saber se o New York Post é um
jornal sério ou um tabloide conservador sensacionalista. Certamente não deveria
ser relevante saber se a reportagem do Post prejudicaria a campanha de Joe
Biden. Também não deveria vir ao caso o juízo sobre se a invasão russa é
defensável ou justificável. O público tem o direito de ler nas mídias sociais a
reportagem do Post e as alegações do governo russo se elas respeitarem as leis
nacionais e as regras públicas das plataformas.
As plataformas digitais são hoje um meio de
comunicação-padrão, um dos principais pelos quais o público se informa. Se algo
é retirado delas, desaparece do debate público. Isso não significa que as
mídias sociais não devam ter regras, mas que elas têm de ser públicas, e sua
aplicação uniforme. É por isso que se diz que uma moderação arbitrária equivale
a uma censura privada. Ao fazer censura privada contra Trump ou Putin, as
empresas não estão atacando a autocracia russa ou a extrema direita americana,
mas apenas copiando seus métodos.
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