Folha de S. Paulo
Sem este fator, Putin provavelmente teria
sido derrotado
Quando deflagrou a
invasão da Ucrânia, Putin imaginava uma cavalgada triunfante das forças
russas até Kiev. Seu colossal erro de cálculo transformou a operação de
conquista numa amarga guerra de atrito conduzida à sombra do arsenal nuclear da
Rússia.
Sem o fator
nuclear, Putin provavelmente teria experimentado uma derrota
humilhante no teatro de guerra. À luz do fracasso da ofensiva inicial russa, a
Otan atenderia aos apelos de Zelensky, impondo uma zona de restrição aérea
sobre a Ucrânia.
Mísseis e aviões da aliança destruiriam, num intervalo de dias, os sistemas de radar e as baterias antiaéreas das forças invasoras. Na sequência, o efetivo aéreo da Otan lançaria uma campanha de patrulha dos ares, neutralizando os aviões russos. Então, ao que tudo indica, os ucranianos repeliriam, em terra, os incompetentes invasores.
Os EUA rejeitaram a ideia da zona de
restrição aérea não pelo temor das forças convencionais da Rússia, que até
agora não obtiveram supremacia aérea, mas
para evitar o risco de uma retaliação nuclear. É perigoso demais
encurralar um urso com armas nucleares.
A crise ucraniana evidencia uma inversão do
paradigma clássico da dissuasão nuclear. Na Guerra Fria, a dissuasão funcionou
como alicerce da segurança estratégica da Europa Ocidental diante da URSS.
Hoje, serve como escudo para uma guerra de agressão desencadeada pela Rússia.
Entre 1945 e 1948, a URSS implantou regimes
fantoches nos países ocupados da Europa centro-oriental. A Otan foi fundada em
1949, como ferramenta de defesa dos aliados europeus dos EUA. Segundo o
consenso da época, o Exército Vermelho não tinha rival no continente: seria
capaz, em poucas semanas, de ocupar a Alemanha Ocidental.
Por isso, a dissuasão de uma hipotética
invasão soviética repousava inteiramente na ameaça de retaliação nuclear
americana.
O equilíbrio nuclear —isto é, a doutrina da
Mútua Destruição Assegurada– garantiu a longa paz europeia da Guerra Fria. Mas,
registre-se: naquelas décadas, supunha-se que os EUA seriam os primeiros a
empregar armas nucleares, pois a URSS detinha vasta superioridade militar
convencional no teatro da Europa.
A tragédia ucraniana evidencia que
inverteu-se a antiga suposição. As forças armadas
de Putin revelaram-se um fiasco. Sob uma tóxica combinação de corrupção,
falhas de planejamento, incompetência estratégias e, principalmente,
resistência das tropas em servir à guerra de conquista, a Rússia mostrou-se
incapaz de derrotar um exército mais fraco, mas altamente motivado.
Depois de um mês de guerra na Ucrânia,
alguém duvida do resultado de um confronto convencional entre as forças russas
e as da Otan no teatro europeu?
O próprio Putin parece não nutrir ilusões
excessivas. Significativamente, após os lances inaugurais da ofensiva
fracassada, o chefe do Kremlin anunciou que teria ordenado a transição de seu
aparato nuclear para um nível elevado de alerta.
A chantagem nuclear funciona. Biden,
Johnson e Macron repetem sem cessar o mantra de que a Otan não está em guerra
com a Rússia e recusam explicitamente o debate sobre a imposição de
uma zona de restrição aérea. Mais: segundo os indícios disponíveis, eles
selecionam o material bélico fornecido à Ucrânia de modo a evitar a hipótese de
contra-ofensiva ucraniana generalizada. É preciso, acredita-se, deixar aberta
uma porta honrosa de saída para Putin.
A lenta agonia das cidades ucranianas e o maior deslocamento de populações desde a Segunda Guerra Mundial —eis o preço cobrado pela chantagem nuclear russa. À sombra das armas de destruição em massa, Putin reinaugura a guerra de conquista territorial, algo que se imaginava uma relíquia bárbara, e comete crimes de guerra em série. E ainda há gente que, carente de um sentido básico de vergonha na cara, responsabiliza a Otan pela matança e o sofrimento em curso.
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