sábado, 26 de março de 2022

Demétrio Magnoli: Sob um guarda-chuva nuclear

Folha de S. Paulo

Sem este fator, Putin provavelmente teria sido derrotado

Quando deflagrou a invasão da Ucrânia, Putin imaginava uma cavalgada triunfante das forças russas até Kiev. Seu colossal erro de cálculo transformou a operação de conquista numa amarga guerra de atrito conduzida à sombra do arsenal nuclear da Rússia.

Sem o fator nuclear, Putin provavelmente teria experimentado uma derrota humilhante no teatro de guerra. À luz do fracasso da ofensiva inicial russa, a Otan atenderia aos apelos de Zelensky, impondo uma zona de restrição aérea sobre a Ucrânia.

Mísseis e aviões da aliança destruiriam, num intervalo de dias, os sistemas de radar e as baterias antiaéreas das forças invasoras. Na sequência, o efetivo aéreo da Otan lançaria uma campanha de patrulha dos ares, neutralizando os aviões russos. Então, ao que tudo indica, os ucranianos repeliriam, em terra, os incompetentes invasores.

Os EUA rejeitaram a ideia da zona de restrição aérea não pelo temor das forças convencionais da Rússia, que até agora não obtiveram supremacia aérea, mas para evitar o risco de uma retaliação nuclear. É perigoso demais encurralar um urso com armas nucleares.

A crise ucraniana evidencia uma inversão do paradigma clássico da dissuasão nuclear. Na Guerra Fria, a dissuasão funcionou como alicerce da segurança estratégica da Europa Ocidental diante da URSS. Hoje, serve como escudo para uma guerra de agressão desencadeada pela Rússia.

Entre 1945 e 1948, a URSS implantou regimes fantoches nos países ocupados da Europa centro-oriental. A Otan foi fundada em 1949, como ferramenta de defesa dos aliados europeus dos EUA. Segundo o consenso da época, o Exército Vermelho não tinha rival no continente: seria capaz, em poucas semanas, de ocupar a Alemanha Ocidental.

Por isso, a dissuasão de uma hipotética invasão soviética repousava inteiramente na ameaça de retaliação nuclear americana.

O equilíbrio nuclear —isto é, a doutrina da Mútua Destruição Assegurada– garantiu a longa paz europeia da Guerra Fria. Mas, registre-se: naquelas décadas, supunha-se que os EUA seriam os primeiros a empregar armas nucleares, pois a URSS detinha vasta superioridade militar convencional no teatro da Europa.

A tragédia ucraniana evidencia que inverteu-se a antiga suposição. As forças armadas de Putin revelaram-se um fiasco. Sob uma tóxica combinação de corrupção, falhas de planejamento, incompetência estratégias e, principalmente, resistência das tropas em servir à guerra de conquista, a Rússia mostrou-se incapaz de derrotar um exército mais fraco, mas altamente motivado.

Depois de um mês de guerra na Ucrânia, alguém duvida do resultado de um confronto convencional entre as forças russas e as da Otan no teatro europeu?

O próprio Putin parece não nutrir ilusões excessivas. Significativamente, após os lances inaugurais da ofensiva fracassada, o chefe do Kremlin anunciou que teria ordenado a transição de seu aparato nuclear para um nível elevado de alerta.

A chantagem nuclear funciona. Biden, Johnson e Macron repetem sem cessar o mantra de que a Otan não está em guerra com a Rússia e recusam explicitamente o debate sobre a imposição de uma zona de restrição aérea. Mais: segundo os indícios disponíveis, eles selecionam o material bélico fornecido à Ucrânia de modo a evitar a hipótese de contra-ofensiva ucraniana generalizada. É preciso, acredita-se, deixar aberta uma porta honrosa de saída para Putin.

A lenta agonia das cidades ucranianas e o maior deslocamento de populações desde a Segunda Guerra Mundial —eis o preço cobrado pela chantagem nuclear russa. À sombra das armas de destruição em massa, Putin reinaugura a guerra de conquista territorial, algo que se imaginava uma relíquia bárbara, e comete crimes de guerra em série. E ainda há gente que, carente de um sentido básico de vergonha na cara, responsabiliza a Otan pela matança e o sofrimento em curso.

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