Folha de S. Paulo
O governo federal colocou em prática a
estratégia de subverter o sistema brasileiro de proteção ambiental por meio de
'reformas infralegais'
A Constituição
de 1988 assegurou a todos o "direito a um meio ambiente ecologicamente
equilibrado... impondo ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações", antecipando de forma
premonitória as ameaças impostas pela crise
climática que hoje constitui um dos principais desafios para a humanidade.
Em atendimento a esse verdadeiro pacto intergeracional estabelecido pelo artigo 225 da Constituição Federal, o Brasil adotou em 2004 um Plano de Ação para Prevenção e Controle de Desmatamento na Amazônia Legal, que foi consolidado pela lei 12.187, de 2009. A implementação desse plano contribuiu de maneira efetiva para a redução de 83% do desmatamento na Amazônia Legal, entre 2004 e 2012, contrariando interesses de grileiros, madeireiros, garimpeiros ilegais e de setores envolvidos em projetos agrícolas insustentáveis.
Incapaz de alterar a Constituição e as leis
de proteção ambiental, para atender sua base de apoio, o governo federal
colocou em prática a estratégia —explicitada por
Ricardo Salles na escatológica reunião ministerial de 22 de abril de 2020—
de subverter o sistema brasileiro de proteção ambiental, por meio de "reformas
infralegais", como se não houvesse amanhã.
Combinada com estrangulamento orçamentário,
nomeação de pessoas inaptas e atos parainstitucionais que estimulam o
desmatamento, o infralegalismo autoritário de Bolsonaro vem
permitindo ao seu governo amesquinhar a ação de agências de proteção ambiental
como Ibama,
ICMBio, Inpe e
mesmo a Funai.
De 2018 para cá, houve uma queda de 82,7%
na imposição de embargos a atividades de desmatamento; assim como uma redução
de 80,7% nas apreensões realizadas pelo Ibama. No mesmo sentido, mais de 5.000
autuações por infrações ambientais correm risco de prescrever em decorrência de
deliberada omissão governo.
O resultado desse plano macabro e
inconstitucional é a impunidade e o aumento do desmatamento. A estratégia do
infralegalismo autoritário, aplicada ao campo ambiental, contribuiu para um
aumento de 76% no desmatamento na Amazônia Legal em 2021, se comparado a 2018.
O desmatamento em terras indígenas (TI) e nas unidades de conservação (UC)
cresceu respectivamente 138% e 130% nos mesmos três anos (Prodes/Inpe). O
índice de emissões causadoras de emergência climática superou três vezes a meta
estabelecida pela Política Nacional de Mudança Climática.
O Supremo Tribunal
Federal, que vem assumindo um papel fundamental na defesa das instituições
democráticas e na proteção do direito à vida e à saúde da população durante o
período Bolsonaro, terá nos próximos dias uma oportunidade única de interromper
essa espiral perversa de devastação ambiental.
Não se trata de interferência indevida do
Supremo em esfera de competência do Executivo, mas de mero exercício da missão
reservada ao Supremo de proteger a Constituição de atos e omissões que a
afrontem. Ao Supremo não se requer a criação de uma política ambiental, mas
apenas que faça cumprir aquilo que foi estabelecido pela Constituição e pelas
leis.
Mais do que a preservação das florestas, do
regime de chuvas, da pujança do agronegócio ou da preservação de nossa matriz
limpa de energia —que dependem de nosso regime de águas—, o que está em jogo
nesse julgamento é o bem-estar de nossos filhos e netos e, no limite, a própria
sobrevivência das futuras gerações.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em
direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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