Folha de S. Paulo
Atual movimentação extremista torna limites
entre energia viva e inorgânica imprecisos
Patéticos ou penosos: incerta é a escolha
da caracterização para os eventos tabajaras posteriores à eleição presidencial.
Haverá outros adjetivos, como grave ou equivalentes, pensando-se nos bloqueios,
na súcia empresarial ou no motim rodoviário. Inequívoco é o diagnóstico de um golpismo bronco, por mais que
tramado e financiado. Tecnicamente, teleguiado por plataformas digitais.
Até agora se supunha que o livre arbítrio qualificasse o relacionamento com a internet. Isso é até possível, quando se consideram a amplitude e a heterogeneidade das possibilidades oferecidas pela comunicação eletrônica. Mas os eventos pós-eleitorais parecem dar margem à estranha hipótese de que as redes digitais organizadas em plataformas e aplicativos tenham adquirido autonomia suficiente para movimentar automaticamente uma enorme parcela dos usuários. Heterodireção é um nome adequado para esse fenômeno: sem o comando direto de um centro, o indivíduo é teledirigido por um sistema de comunicação autonomizado.
Vem à memória "A Máquina Parou"
(1909), de E.M. Forster, a distopia de um mundo subterrâneo regido por uma
supermáquina, onde o elemento humano não conta. Toda dissonância é corrigida
por um dispositivo reparador denominado "verme esbranquiçado".
Forster antecede de muito o computador, mas sua fantasia maquinal é parente dos
algoritmos de Facebook, YouTube, TikTok, Kwai ou dos disparos em massa do Zap e
Telegram.
Na atual movimentação extremista de rua, intrigante é a
imprecisão dos limites entre energia viva e inorgânica, ou seja, não saber se
os fluxos partem de pessoas ou robôs. Ainda que haja um óbvio centro
financiador, o sistema de desinformação é subterrâneo e impermeável à lógica
dos fatos. O efeito imediato é o apagamento de percepção da realidade histórica
em função do artifício paralelo. Daí a dissonância entre o foco algorítmico e o
desfoque sociopolítico dos manifestantes.
A consequente ambiguidade tornou sinônimos patriotismo e arruaça.
Mas, sendo apenas programação de baderna, o golpismo tabajara também confundiu
a diretiva de "intervenção federal", desnorteando os fanáticos. De
evidente apenas a maquinação anticívica: aliás, colar-se à frente de uma
carreta em velocidade é a alegoria do desejo absurdo de fusão com uma máquina.
O apoio ao derrotado virou pedido tresloucado de retorno do mecanismo militar.
Algoritmos não falam em línguas. Na sua falta, uma histriônica histeria de
conversão coletiva: crentes falando embolado na frente de quartéis, saudações
nazistas, gente entoando o hino nacional para pneu de caminhão, marcha
alucinada em passo de ganso. A máquina parou, os surtados ficarão à espera de
um verme esbranquiçado.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".
5 comentários:
Jesus,Maria e José!
Artigo certeiro.
https://www.escritas.org/pt/t/48387/a-espera-dos-barbaros
Ah! Sodré. Não são 'eventos tabajaras' ( que fazem parte dos povos originários)
são eventos arruaceiros e. Valem os livros: O Conflito de Georg Simmel e
As funções do conflito social de Lewis A. Coser. Em PDF na internet
Com relação aos livros: O Conflito, de Georg Simmel e
As funções do conflito social, de Lewis A. Coser. Em PDF na internet
«O grupo como um todo pode entrar em uma relação antagonista com
um poder exterior a ele, e devido a isso se dá o fortalecimento das
relações entre seu membros e a consolidação de sua unidade, em
consciência e em ação».
Georg Simmel, «Conflict», p. 191
«Esta "busca do inimigo exterior" (o exagero do perigo que
representa um inimigo real) serve não só para manter a estrutura do
grupo, senão também para fortalecer sua coesão quando se veja
ameaçado pela redução de energias ou por dissensão interna. A intensidade
do conflito externo aviva a vigilância dos membros e, ou reconcilia
as tendências divergentes, ou leva à ação do grupo contra o dissidente».
Lewis A. Coser, The Functions of Social Conflict, p. 106
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