O Globo
Era véspera de 21 de março,
recém-instituído Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matriz Africana e
Nações do Candomblé, quando o Museu da
República se abriu em festa pela assinatura de acordo de
cooperação técnica com o Ministério dos Direitos Humanos e a Defensoria Pública
da União. A denominação formal esconde o que a cerimônia daquela tarde
verdadeiramente significava: ato de justiça e reparação com o povo preto. Ao
menos três centenas de inquéritos policiais sobre incursões em terreiros do Rio
de Janeiro e apreensão de objetos sagrados, entre 1890 e 1946, serão
escrutinados. Ao fim da empreitada, estará provado que o Estado brasileiro
violou o direito constitucional à liberdade religiosa.
Só uma viagem no tempo esmiúça o enredo. Foi em setembro de 2020, em plena pandemia da Covid-19, que as 519 peças de axé saíram do depósito do Museu da Polícia Civil para sua dignidade ser restaurada na velha sede do Executivo, o Palácio do Catete. O conjunto, chamado pejorativamente de Coleção Magia Negra, foi rebatizado de Acervo Nosso Sagrado, denominação ora registrada formalmente pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Libertem Nosso Sagrado foi a campanha de reivindicação do tesouro sequestrado, iniciada em 2017 por líderes religiosos, à frente a ialorixá Mãe Meninazinha de Oxum, e encampada pelo Ministério Público Federal (MPF-RJ).
No Museu da República, imagens e
fragmentos, instrumentos, atabaques, roupas ritualísticas e fios de contas
foram catalogados, fotografados. Estão preservados. Para setembro, está marcada
a primeira exposição pública do acervo, por três a cinco anos. Virão também
livros, catálogo, oficinas, seminários. Há um par de anos, um time de
especialistas, formado pela equipe do museu e por líderes de umbanda e
candomblé, investiga origem e história das peças. A mais impressionante,
potente, comovente é Exu Ijelu.
Ele foi subtraído do terreiro de Mãe Luzia
Cardoso, no Engenho Novo, Zona Norte carioca, em outubro de 1934. O inquérito
policial contém uma foto da divindade identificada como “prova do crime”. Os
agentes da Era Vargas chamaram-na equivocadamente de Caboclo Lalu. A
investigação identificou até o escultor que confeccionou a peça, Artur Cunha.
Quem conta é a historiadora Maria Helena Versiani, do setor de Pesquisa
Histórica do museu:
— O delegado que ordenou a prisão de Mãe
Luzia foi Dulcídio Gonçalves, o mesmo que exigiu a mudança do nome da hoje
centenária escola de samba de Vai Como Pode para Portela. O grupo sugeriu o
nome Exu Ijelu, mas o debate ainda está aberto. Há a possibilidade de ser Exu
Lalu. Uma monitora que morava no mesmo bairro, em diálogo com uma vizinha, nos
trouxe a esperança de chegarmos aos herdeiros do terreiro.
É trabalho minucioso, que envolve pesquisa,
conversas, parcerias com instituições, academia e religiosos. Há arquivos de
jornais que atestam invasão de terreiros e confisco de objetos por policiais
durante festejos de Ogum, num Dia de São Jorge, 23 de abril de 1935. Nosso
Sagrado é instrumento de extraordinário aprendizado, sobretudo para
profissionais formados sem remota ideia do significado e do valor da
religiosidade afro-brasileira. A esse grupo, agora, se juntarão defensores
públicos e especialistas da área jurídica para averiguação dos arquivos
criminais.
O acordo firmado no mês passado engloba 214
de 218 inquéritos policiais já digitalizados pelo Arquivo Nacional e prontos
para ser analisados. Outros 146 processos estão na mira. São todos de 1941, ano
em que Filinto Müller, chefe da polícia do então Distrito Federal, ordenou
incursões que resultaram na prisão de quase cem pais e mães de santo e no
sequestro de inúmeros objetos sagrados de terreiros cariocas.
No que já foi possível averiguar, há
inquéritos relacionados a crimes previstos no primeiro Código Penal da
República, de 1890. O Artigo 156 criminalizava o exercício ilegal da medicina;
o 157, a prática de espiritismo, magia e sortilégios; o 158, o curandeirismo.
Como disse Mario Chagas, diretor do Museu da República, na cerimônia de
assinatura do acordo com MDH e DPU:
— Os objetos eram apreendidos em batidas
policiais, que aconteciam durante as cerimônias religiosas, e permaneciam
presos como prova documental de um crime que não existiu. O povo de axé era
perseguido por cultuar seu sagrado, seus orixás. Isso sim era um crime cometido
pelo Estado contra as religiões de matriz afro-brasileira.
A libertação das peças é parte de uma
caminhada inconclusa por justiça e reparação. Falta o Estado se reconhecer como
agente de um projeto de perseguição a religiões de matriz africana, que começou
no Brasil Colônia, atravessou o Império, alcançou a República. E ainda hoje se
manifesta em ataques a terreiros país afora, agressões a iyás, babalorixás,
filhas e filhos de santo, injúrias proferidas sem pudor por figuras da política
e de igrejas. Nas palavras do ministro dos Direitos Humanos, Silvio
Almeida:
— Falar de perseguição às religiões de
matriz africana, na verdade, é falar de racismo. Naquilo que se classifica de
racismo religioso (crime previsto na Lei 14.532/2023). É muito importante
conhecermos essa dimensão da memória, da verdade e da justiça como ponto de
partida para que a gente mude a sociedade brasileira.
Ensina o oriki:
— Exu matou um pássaro ontem com a pedra
que atirou hoje.
Laroiê!
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