Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
A ABL tem o desafio de reconhecer a
legitimidade dos quadrinhos como campo literário
Mauricio de Sousa, o pai da Mônica,
candidatou-se a uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras. O assunto
passaria batido, como se diz, não fosse um outro presumível candidato ter se
manifestado com a afirmação: “Mauricio de Sousa não tem o que acrescentar à
ABL, eu tenho”.
Mauricio de Sousa é internacionalmente
reconhecido como o maior formador de leitores no Brasil. Várias gerações
adquiriram o hábito da leitura nas histórias da “Turma da Mônica”.
Recentemente, ele recebeu homenagem da Unesco justamente por isso.
A qualificação de um autor está não só na sua competência de escrever, mas também na sua competência de ser reconhecido como autor indispensável. Milhões de brasileiros foram e são leitores de sua obra. Ele é o grande porta-voz literário e artístico da simplicidade, do propriamente humano.
Os quadrinhos têm, no Brasil, mais que
centenária tradição na difusão do hábito de ler. Escritores foram lidos através
deles. Uma das nossas mais antigas e emblemáticas publicações, “O Tico-Tico”,
surgiu em 1905 e foi editada até 1961. Em cores e em preto e branco, os
quadrinhos antecipavam a iniciação à leitura. Criavam uma cultura baseada no
pressuposto do ler e imaginar, de ver o que era lido.
Nascia um tipo de literatura de que
Mauricio de Sousa é hoje o mais destacado continuador. Ele é, também,
continuador da obra de Monteiro Lobato, nascido no mesmo Vale do Paraíba em que
ele nasceu.
Sou da geração que lia “O Tico-Tico”, “Vida
Infantil” e “Vida Juvenil”, nos anos 1940. Esta última combinava quadrinhos e
textos literários. Em casa, passei dessas “revistinhas” para os folhetins que
minha mãe assinara e guardara. E, na sequência, tornei-me assinante do Clube do
Livro, de Mário Graciotti, da Academia Paulista de Letras.
Ainda guardo alguns desses livros, de
Afonso Schmidt, também da Academia. Ele lutava com dificuldade para sobreviver.
Graciotti convidou-o para escrever um livro por ano, para o mês de janeiro. Um
jeito do integralista, de direita, ajudar o amigo e confrade anarquista, de
esquerda.
Sou da geração que seguiu o itinerário dos
quadrinhos para os livros, da leitura para a autoria. Em minha família, minha
mulher e eu, minhas filhas e meus genros percorremos esse caminho. Hoje somos
seis autores na família, com livros publicados em diferentes campos do
conhecimento. Minha filha mais velha e meu genro estudaram no Instituto de
Geociências da USP, onde fizeram o curso e onde defenderam suas teses.
O personagem simbólico da escola é o
Brucutu, personagem de tiras de jornal, um humano impropriamente situado em
tempos pré-históricos. O Brucutu não tolheu competências no instituto de que é
herói simbólico.
Numa época de quadrinhos americanos, de
humanos minimizados pela animalização da imagem, o surgimento de Mauricio de
Sousa como autor de quadrinhos, com histórias de humanos e de sua humanização,
foi uma lufada de ar fresco no mundo das novas gerações. Ele libertou a
concepção de personagem de histórias em quadrinhos da triste condição de reféns
do imaginário da coisificação dos seres humanos.
Tenho um netinho de 1 ano e meio. Minha
filha e meu genro lhe leem histórias desde que nasceu. As histórias de Mauricio
de Souza entraram no currículo dele bem cedo. Ele conhece os personagens e os
nomes, que abrevia na linguagem balbuciada própria da idade.
Mauricio carrega no bolso cartões com as
figuras dos seus personagens, que distribui às crianças e aos adultos que têm
filhos e netos. Na Academia Paulista de Letras, premia os confrades com eles.
Meu neto conhece o Ício (Mauricio), a Môni (Mônica), o Ácio (Horário), o Bebeto
(Chico Bento). Ainda nesta semana eu o vi com o cartão do Ício, que ele sabe
ser o pai da Mônica, numa das mãos, e o da Môni na outra. Ício fingindo contar
história para a filha numa linguagem que só eles sabem qual é.
Meu neto pega um dos livros das histórias
do Mauricio e “o lê” para o seu cachorrinho. Depois, mostra o livro para o
cãozinho e pede que lhe conte a história. Em face do silêncio, pede a minha
filha: “Mamãe, lê”.
Mauricio de Sousa não brinca com o
imaginário passivo de enquadramento de crianças e adolescentes. O centro de sua
obra literária é fazer dos que estão chegando ao mundo sujeitos ativos da
imaginação, ou seja da invenção e da criação de história e da vida.
O menosprezo pela candidatura de Mauricio
de Sousa a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras desencadeou uma
avalanche de cartas aos jornais de reconhecimento de sua obra. Um desafio a que
a ABL, como já o fez a Academia Paulista de Letras, reconheça a legitimidade do
campo literário de que ele é o nosso mais criativo e inspirado autor.
*José de Souza Martins é sociólogo.
Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón
Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94).
Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de
Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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