Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Alexandre Saraiva, delegado da Polícia
Federal que derrubou Ricardo Salles, conta em livro sua experiência de dez anos
na Amazônia antes de ser colocado na geladeira em que permanece até hoje
Em janeiro de 2020, dois cidadãos
americanos, Frank Giannuzzi e Steven Bellino, além de um brasileiro, Brubeyk
Nascimento, apresentaram-se na alfândega do aeroporto de Manaus para registrar
a documentação de carga a ser embarcada por eles, dias depois, com destino aos
Estados Unidos.
Declararam que transportariam, em mãos, 35 quilos de ouro em barras avaliadas em R$ 10 milhões. A Receita liberou a carga, mas, ao voltarem para o embarque, as barras foram apreendidas e os três, detidos. Entre a declaração de transporte e o embarque, o funcionário da Receita acionou a Polícia Federal.
Nada batia. A história juntava dois agentes financeiros que atuavam em Wall Street e um brasileiro com endereço em Manaus, telefone com DDD de Goiânia e carga adquirida em São Paulo. Só o embarque por Manaus fazia sentido. Era por ali que se escoava o ouro adquirido no garimpo ilegal.
Naquela semana, a Superintendência da PF em
Manaus havia recebido um equipamento importado da Alemanha capaz de fazer a
análise instantânea da composição química de materiais. Se as barras se
originassem da reciclagem de joias, o percentual de ouro não ultrapassaria 75%,
mas o detector alemão cravou outro resultado: 98% de pureza.
Os policiais não tiveram dúvida de que
tinham em mãos um produto do garimpo ilegal. Apesar da comoção internacional
despertada pelo crime, aqueles contrabandistas eram a prova de que o ouro
brasileiro continuava a fazer fortunas também no exterior.
A história está contada em “Selva -
madeireiros, garimpeiros e corruptos na Amazônia sem lei” (Intrínseca, 2023),
do delegado da PF Alexandre Saraiva. O autor ainda desafiou a justiça, que,
além de mandar soltar os contrabandistas, liberou, por decisão do ministro do
Superior Tribunal de Justiça Ney Bello, as barras de ouro.
Saraiva mandou uma equipe tirar as barras
dos cofres da Caixa Econômica Federal, onde supôs que o gerente não resistiria
a um oficial de justiça, e conseguiu que a Agência Nacional de Mineração
ordenasse uma apreensão administrativa que não estaria ao alcance da decisão
judicial. As barras estão no cofre da Superintendência da PF no Amazonas, mas a
disputa por sua posse continua nos tribunais. “Literalmente iríamos entregar o
ouro ao bandido”, lembra Saraiva.
A experiência deu ao delegado a certeza de
que a investida anunciada pelo Banco Central sobre a comercialização do ouro
não vai dar em nada. O BC foi intimado a prestar informações ao Supremo, em
ação proposta pelo PV e relatada pelo ministro Gilmar Mendes, sobre a aquisição
de ouro pelas distribuidoras de títulos e valores mobiliários.
Na resposta enviada ao STF, o BC diz que
está em busca de tecnologia adequada para que as informações relativas à origem
do ouro fornecidas às DTVMs não seja feita apenas com base na boa-fé dos
declarantes. Saraiva demonstra que a tecnologia já existe.
Antes mesmo que a tecnologia da composição
química estreasse em Manaus, há três anos, já era possível cruzar as
autorizações da Agência Nacional de Mineração e as imagens de satélite do
Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Se houver autorização sem lavra é
indício de “lavagem” de ouro ilegal. Sobram meios para conferir a documentação
de origem por rastreamento científico.
Saraiva ainda ganhou proeminência, ao longo
do governo Jair Bolsonaro, por ter liderado a maior apreensão de madeira ilegal
do país, avaliada em R$ 130 milhões. Suficiente para carregar 7,5 mil
caminhões, a apreensão resultaria na demissão de Ricardo Salles do Ministério
do Meio Ambiente.
A operação é um dos capítulos mais ricos
sobre o faroeste amazônico sob Bolsonaro. Nascido em São Gonçalo (RJ), em 1970,
e tendo trabalhado os oito primeiros anos de sua carreira como policial federal
no Rio, Saraiva viu o Estado chegar a um ponto hoje considerado de não retorno
em relação ao crime organizado. Foi nesta rota que o governo Bolsonaro deixou a
Amazônia, diz Saraiva.
O assassinato do indigenista Bruno Pereira
e do jornalista Dom Phillips, num território disputado por facções que se valem
do garimpo ilegal nas terras indígenas para a compra de cocaína no outro lado
da fronteira, é apenas a última das evidências de que o Brasil está a um passo
de perder a Amazônia para o crime organizado.
A investigação conduzida por Saraiva
demonstrou como Salles integrava um grupo que fornecia documentos fraudulentos
à PF, dificultava a fiscalização ambiental e obstruía a investigação policial.
Os relatórios da PF apontavam o uso da própria mãe, de quem Salles, hoje
deputado federal pelo PL de São Paulo, é sócio, num escritório de advocacia,
como “laranja” de atividades ilegais.
O relato dá conta, ainda, da mudança na
postura do Comando Militar do Norte. Depois de auxiliar a PF na guarda das
toras apreendidas, comunicou, repentinamente, que não poderia fazer a remoção
da madeira.
Saraiva conduziu a operação sob o temor de
que poderia ser afastado da Superintendência da PF no Amazonas a qualquer
momento. Ciente de que poderia ser barrado pelo diretor-geral da PF, Paulo
Maiurino, comunicou-lhe a denúncia contra o ministro 20 minutos depois de dar
entrada no sistema eletrônico do STF. No dia seguinte, foi exonerado.
A superintendência no Amazonas foi o
terceiro último cargo na região ocupado por Saraiva ao longo de uma temporada
de dez anos iniciada em Roraima e com uma passagem ainda pelo Maranhão. Ao
longo do período na região, deu-se conta das limitações do trabalho da PF. Em
Manaus apreendeu toras registradas em nomes de empresas que, anos antes, havia
autuado em Roraima.
Foi lá que entendeu como a distribuição de
títulos de terras faz com que na Amazônia as propriedades rurais tenham que ser
“empilhadas” para caberem nos limites territoriais dos Estados. A burla no
registro fundiário é o primeiro passo na cadeia de fraudes que resultava na
emissão indiscriminada de Documentos de Origem Florestal (DOFs) pelo Ibama.
Isso se ampliou num momento em que, das 27 superintendências estaduais do
Ibama, 24 foram parar nas mãos de coronéis da PM e uma nas de um coronel do
Exército.
De posse desse documento, os proprietários
obtêm uma autorização de desmate alegadamente para agricultura, mas, de fato,
apenas para a extração da madeira. A atuação na região e o doutorado na
Universidade Federal do Amazonas deram a Saraiva a certeza de que a
agropecuária é apenas uma fachada para a indústria ilegal de extração de
madeira.
O delegado vê o Brasil a caminho de repetir
o desastre do Sudeste Asiático, que derrubou suas florestas para abastecer
primeiro o Japão, depois o resto do mundo de madeira barata. Foi o esgotamento
das reservas naquela região que levou à elevação do preço da madeira
brasileira. Por isso, defende a moratória da extração de madeiras nativas. E
espera que, um dia, um piso de mogno seja tão reprovável quanto hoje o é usar
um casaco de peles.
Essa indústria não vicejaria sem a vista
grossa da comunidade internacional que cobra a proteção das florestas mas
importa madeira sem se ocupar de sua origem. Vide a Biblioteca Nacional em
Paris. Templo de uma cultura enraizada do ambientalismo, o prédio, obra de
François Mitterrand, usou 60 mil m2 de ipê.
Não se trata de uma infração do passado. Saraiva
esmiuçou a regulamentação europeia e concluiu que as regras de importação de
madeira na União Europeia são muito mais lenientes do que aquelas de produtos
agropecuários brasileiros que enfrentam concorrência local.
Do embate com Salles lhe sobrou uma
sindicância interna pelas entrevistas concedidas. Saraiva é tão confiante em
decisão do Supremo que lhe garante o direito de se manifestar que escreveu
“Selva”. Além da sindicância, o embate lhe rendeu também um convite do PSB do
Rio para que disputasse a Câmara dos Deputados. Rejeitou fundo eleitoral ou
partidário. Gastou R$ 5 mil do próprio bolso - R$ 1,5 mil com advogado, R$ 1,5
mil com o contador e R$ 2 mil com adesivos. Teve 16 mil votos.
Concluiu não ter vocação para a política.
Chegou a participar da transição, quando sugeriu uma operação urgente na
reserva dos Yanomâmis, que só acabaria acontecendo por causa da denúncia do
site Sumaúma, em 20 de janeiro, e operações em portos e aeroportos para barrar
o embarque de madeira ilegal.
Na montagem do governo, porém, não foi
convidado a voltar à Amazônia ou a cargo de confiança. Permanece em Volta
Redonda. Não deixa de ser verdade que o delegado queira ficar perto de sua
família, depois de 10 anos na Amazônia, como se alega na PF, mas o fato é que
nenhum convite foi feito.
A ação destemida calou os críticos que
exploravam sua proximidade com Alexandre Ramagem, delegado que foi chefiado por
Saraiva em Roraima. Chefe da Abin sob Bolsonaro, foi ele quem levou o colega
até o ex-presidente quando estava em pauta um nome para o Meio Ambiente.
Saraiva, superintendente da PF no Amazonas
à época, foi até a casa de Bolsonaro na Barra da Tijuca. Não concordaram em
nada. O delegado saiu de lá sem convite e o cargo acabaria sendo oferecido a
Salles.
Muitos dos que Saraiva enfrentou na
Amazônia hoje integram a base do governo - e o ministério. Quando foi
exonerado, desmatavam-se 1,5 mil km2 por ano na Amazônia Legal. Em 2021, ano em
que deixou a região, pulou para 2,3 mil. No ano seguinte chegou a 2,6 mil. Mais
do que uma cidade de São Paulo abaixo por ano.
O compromisso eleitoral deste governo impõe
uma reversão em 2023, mas há pressões em curso. O ipê, a exemplo do pau brasil
e do mogno, integrava a lista de árvores ameaçadas até ser dela retirada por
Bolsonaro. Ao fazê-lo, previu que as madeiras do gênero Handroantus, nas quais
estão incluídos todos os ipês, voltassem ao index em julho. Portaria do atual
governo prorrogou sua exclusão do index até novembro de 2024. Segundo o Ibama,
para se ajustar à convenção internacional. Handroantus foi o nome da operação
da PF que derrubou Ricardo Salles.
Maria Cristina Fernandes
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