Folha de S. Paulo
Foi preciso voltar para o futuro para
propor novo arcabouço fiscal
Na segunda (10), o governo Lula faz
cem dias. Operou um retorno para o futuro. Foi preciso reconstruir o Bolsa
Família, o Minha
Casa Minha Vida, o Mais Médicos,
o Programa de Aquisição de Alimentos, o diálogo com a China, a política
ambiental, as relações exteriores... "É pouco; tudo coisa velha". Não
tenho contra-argumento para o que nem errado consegue ser. Como na conhecida
piada, é impossível jogar xadrez com pombo.
A 26 de março de 2019, escrevi aqui
um texto
sobre o terceiro mês de governo Bolsonaro. Doze dias antes, o
ministro Dias Toffoli,
então presidente do STF, abrira de ofício o inquérito 4.781, o tal das
"fake news", com relatoria de Alexandre
de Moraes. As milícias digitais já haviam transformado o tribunal no seu
alvo principal. Os dois apanharam uma barbaridade da e na imprensa. Defendi de
pronto a estrita legalidade daquela decisão, a primeira de uma série, nos
limites da competência da Corte, que concorreram para preservar o estado de
direito. As antenas do jornalismo falharam miseravelmente nesse caso.
Exatamente dois meses depois daquela coluna, acontecia o primeiro ato golpista, com patrocínio do Planalto. E a canalha não parou mais. Até resultar no 8 de janeiro de 2023. O mal-estar continua entre nós e mata crianças. Maus contadores da história gostam de acusar o Supremo de ter esticado a corda, o que teria levado o então presidente à radicalização. Mito. A escalada fascistoide começou já nos dois discursos de posse. Ele não precisava de motivos, só de pretextos.
Destaquei naquele texto o desempenho
institucional de Fanfarrão Minésio. Transcrevo: "Cometeu
crime de responsabilidade, diz a lei, quando agrediu o decoro e propagou um
filminho pornô. Vá lá. A coisa ganhou um tom até meio apalhaçado como
consequência da estupefação geral. Mas ele se mostra insaciável nos seus três
meses. A ordem para ‘comemorar’ o golpe militar de 1964 — e o verbo foi
empregado pelo porta-voz — e sua visita à CIA, onde, confessadamente, tratou da
crise na Venezuela, agridem, respectivamente, os valores contidos nos Artigos
1º e 4º da Constituição."
E prossegui: "A mesma lei 1.079 que
depôs Dilma Rousseff considera, no item 3 do artigo 5º, ser ‘crime de
responsabilidade contra a existência da União cometer ato de hostilidade contra
nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou
comprometendo-lhe a neutralidade’. O Artigo 7º aponta como ‘crimes de
responsabilidade contra o exercício dos direitos políticos, individuais e
sociais’ as seguintes práticas: "incitar militares à desobediência à lei
ou infração à disciplina’ e ‘provocar animosidade entre as classes armadas ou
contra elas, ou delas contra as instituições civis’. O mesmo artigo, no item 5,
dispõe a respeito da destituição do fiscal do Ibama, ato do ministro Ricardo
Salles: é crime de responsabilidade ‘servir-se das autoridades sob sua
subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas
autoridades o pratiquem sem repressão".
E houve a penca de crimes comuns. Seu primeiro
ato foi um decreto facilitando o porte de armas. Outros vieram. Não demorou
para que as organizações criminosas usassem a licença de CAC para o tráfico de
armas. O vírus do ódio se disseminou. Em 21 anos, houve 22 ataques a escolas no
país; 12 deles se deram de 2019 para cá. Veio a pandemia, e o Brasil entrou no
mapa dos Estados que praticam a necropolítica.
Lula venceu um golpe de Estado, pôs fim ao
genocídio yanomami e apresentou uma proposta de marco fiscal que até Roberto
Campos Neto se vê obrigado a elogiar, embora continue a cavalgar o
Pégaso dos juros para o delírio poético de maus liberais do século passado. Já
li muitas vezes, metáfora compreensível, que o tal arcabouço é uma tentativa de
agradar a "gregos e troianos". Vamos de Homero: não eram diferentes
nem na religião. Trata-se de contemplar, evocando o poeta e crítico José Paulo
Paes, "gregos e baianos". Afinal, a civilidade política tem uma
dívida de gratidão com estes últimos, pouco importa o Estado de origem. Os
reais e os simbólicos salvaram a democracia. São cem dias de volta ao Século
21, com todos os seus sortilégios. E com os baianos no Orçamento. Para a fúria
dos gregos. Hora de ajeitar as antenas.
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