Evitar massacres em escolas exige mais que improviso
O Globo
Governo deveria tentar
entender fatores que levam às tragédias para adotar políticas públicas
consistentes
Pouco mais de uma semana
depois do trauma do ataque a uma escola estadual em São Paulo, onde um aluno
adolescente matou uma professora e feriu outras quatro vítimas, o Brasil se vê
chocado e perplexo diante de nova atrocidade. Na quarta-feira, um jovem de 25
anos invadiu uma creche em Blumenau, Santa Catarina, matou quatro crianças e
deixou cinco feridas, ampliando a dor, o pânico e o sentimento de impotência
diante dessa barbárie que tem ocorrido em intervalos cada vez mais curtos no
Brasil, repetindo uma tragédia que assombra os Estados Unidos.
Levantamento de
pesquisadores da USP depois do ataque à escola de São Paulo identificou 22
ações violentas do tipo em estabelecimentos de ensino no Brasil desde 2002 —
metade desde fevereiro do ano passado. A aceleração é inequívoca. Os atos de
barbárie deixaram 40 mortos entre vítimas e agressores. Um dos casos guarda
semelhança com a tragédia de Blumenau: em 4 de maio de 2021, um jovem de 18 anos
invadiu uma creche no município de Saudades, Oeste de Santa Catarina, matou
três crianças e duas professoras. Está preso e aguarda julgamento.
Na raiz de boa parte dessas atrocidades estão o ódio, a intolerância, o preconceito e o extremismo de direita que campeiam nas fronteiras livres da internet. Não se trata apenas de fóruns de acesso restrito ou deep web, mas das populares redes sociais, onde adolescentes e jovens mantêm diálogos estarrecedores que incentivam a barbárie, glorificam massacres e idolatram homicidas. Muitas vezes, as ações cruéis são planejadas e anunciadas em conversas que chocam pela ausência de qualquer vestígio de compaixão. Amparadas no dispositivo legal que as exime de responsabilidade pelo conteúdo que veiculam, as plataformas digitais pouco ou nada fazem para deter essa aberração.
Outros fatores se
entrelaçam para insuflar as brutalidades. Um deles é conhecido entre os
estudiosos como “efeito contágio”. Num ciclo perverso, cada novo ataque inspira
outros. A saúde mental dos estudantes também contribui para o cenário nefasto.
Sabe-se que os problemas foram agravados pelos quase dois anos de escolas
fechadas na pandemia. De modo geral, faltam programas e profissionais
especializados para avaliar e acompanhar os casos. As escolas desconhecem o que
se passa com os alunos. Por fim, o culto às armas e a multiplicação do arsenal
em poder da população nos últimos quatro anos ampliaram ainda mais os riscos.
Consumado o ataque em
Santa Catarina, com o país em choque, o governo federal anunciou medidas para
conter outras tragédias. Foi uma reação para tentar dar resposta — qualquer
resposta — à sociedade. Não havia nenhum plano pensado para endereçar um
problema com causas diversas e solução complexa. Cada uma exige ações
específicas, baseadas em políticas públicas comprovadas. Em vez disso, o governo
improvisou uma série de medidas de caráter incerto — algumas sensatas, outras
visivelmente insuficientes, para não falar no que é apenas flagrante
desperdício de energia.
O ministro da Justiça e
Segurança Pública, Flávio Dino, prometeu liberar R$ 150 milhões para ampliar as
patrulhas escolares em todo o país. Claro que, na situação atual, qualquer
recurso é bem-vindo. Mas, considerando que o Brasil tem mais de 220 mil escolas
e que os ataques surgem de modo inesperado, esse valor — menos de R$ 700 por
escola — não dá nem para começar. A criação de um grupo com 50 policiais
federais para monitorar crimes nas redes, a partir de uma central na Secretaria
de Segurança Pública, é fundamental, já que os autores dos massacres, sempre em
busca de qualquer fiapo de notoriedade, costumam anunciá-los com antecedência
nesses canais. Mas a medida só surtirá efeito se houver integração com as áreas
de inteligência estaduais.
A gravidade da situação
não dá margem para demagogia. As autoridades estão diante de um desafio que
envolve múltiplos fatores, cada um exigindo iniciativas próprias, muitas vezes
fora da esfera restrita da segurança pública. Mesmo pesquisadores que se
dedicam a estudar o assunto anos a fio se mostram perplexos com a escalada de
ódio e violência, com a escolha de crianças indefesas como alvo preferencial,
com a notoriedade que os criminosos buscam em redes que cultuam a morte. Não
será um problema de solução fácil nem imediata, como demonstram os anos que os
Estados Unidos têm dedicado a ele sem sucesso.
Prender ou apreender os
agressores é o mínimo a fazer, mas está longe de resolver a questão. Cabe às
escolas cuidar de seus alunos, identificar neles sinais de transtornos ou
desvios que possam pôr a comunidade escolar em risco e informar as autoridades
sempre que houver violação da lei. Cabe à imprensa adotar uma postura
responsável na cobertura dos fatos, evitar dar aos criminosos a visibilidade
que buscam e tentar reduzir o “efeito contágio” (o Grupo Globo acaba de adotar
as normas mais restritivas para a cobertura jornalística desses eventos). Cabe
aos acadêmicos estudar e produzir conhecimento sobre a questão da forma mais rápida
e consistente que puderem.
Quanto ao governo, o
melhor que tem a fazer é, antes de mais nada, entender o problema em suas
múltiplas dimensões, para tratá-lo de forma científica e profissional, com base
em políticas públicas comprovadas, e não com o amadorismo que se tem visto. Do
contrário, jogará dinheiro fora enquanto o país sofrerá novas tragédias.
Contra o saneamento
Folha de S. Paulo
Decretos de Lula que
aviltam marco legal atendem a preconceito ideológico
Assinados por Luiz Inácio
Lula da Silva (PT), os decretos que alteram o marco legal do saneamento básico
em favor de empresas estatais ineficientes representam grave retrocesso para a
política social.
Movido por preconceitos
ideológicos e sensível aos interesses mesquinhos de políticos provincianos, o
petista arrisca prolongar o vexatório atraso do país, que ainda nega a coleta
de esgoto a cerca de 100 milhões de brasileiros.
Falta de saneamento é
afronta aos direitos humanos com consequências dramáticas para a saúde pública,
inclusive na primeira infância, o que contribui para a perpetuação de
desigualdades sociais.
Os decretos de Lula
modificam dispositivos essenciais da lei, aprovada em 2020 pelo Congresso após
longo período de tramitação.
De mais relevante, foram
reabertos os prazos e facilitadas as condições para que estatais que não
provaram capacidade financeira para cumprir a meta de universalização da coleta
de esgoto até 2033 possam agora fazê-lo.
Essas empresas terão até o
fim deste ano para apresentar a documentação, que precisará ser avaliada pelo
regulador até março de 2024. Nos casos em que o histórico for insuficiente, a
interessada poderá propor uma remediação, com prazo de cinco anos.
Na prática, os contratos
de serviço antes prejudicados —em 1.117 cidades, ou cerca de 20% do total—
poderão ser regularizados com muito mais facilidade.
O prazo para a
regionalização dos serviços, que venceu em 31 de março, foi prolongado para
2025. Enquanto isso, os municípios poderão receber recursos federais.
Outro aspecto que gera
controvérsia é a permissão, antes inexistente, para que
companhias estaduais prestem serviços sem licitação em
microrregiões e regiões metropolitanas. A garantia de qualidade do serviço será
menor, portanto.
Por fim, foi eliminado
o limite de 25% para a celebração de parcerias público-privadas, o
que em tese pode ter impacto positivo para atração de investimentos. Com o
favorecimento a estatais ineficientes, contudo, a flexibilidade pode apenas
garantir sua permanência, como intermediárias.
É mais que duvidosa,
assim, a afirmação do ministro das Cidades, Jader Filho, de que as novas regras
abrirão espaço para R$ 120 bilhões em investimentos. O mais provável é que os
aportes ocorram em ritmo mais lento e desigual.
Ao menos permaneceu a
liberdade para que governos estaduais privatizem suas companhias, como
pretendem São Paulo e Minas Gerais. Outros, como Rio Grande do Sul e Rio de
Janeiro, já o fizeram, total ou parcialmente. Será possível verificar quem
avançará mais rapidamente nos próximos anos.
Bolsonaro depõe
Folha de S. Paulo
Caso das joias sauditas
expõe versões tortuosas para ato que seria corriqueiro
Jair Bolsonaro (PL) anda
mesmo com o prestígio em baixa. Apenas um homem com camisa do Brasil apareceu
na sede da Polícia Federal em Brasília para apoiá-lo na quarta (5),
quando depôs, como
investigado, sobre as joias recebidas de autoridades da Arábia Saudita.
No mesmo dia, mas em São
Paulo, também prestou depoimento Mauro Cid, tenente-coronel do Exército que foi
ajudante de ordens do ex-presidente.
Muito precisa ser
esclarecido sobre esse misterioso caso, a começar pelo estranhíssimo
procedimento de entrada no Brasil, após visita da comitiva oficial ao país
árabe. Por que um assessor do almirante Bento Albuquerque, ex-ministro de Minas
e Energia, tentou sonegar um estojo de joias avaliado em R$ 16,5 milhões?
E por que as explicações
mudaram ao sabor das circunstâncias? O almirante, por exemplo, afirmou na
chegada ao aeroporto que o pacote seria um presente para a então primeira-dama
Michelle Bolsonaro, mas, quando ele próprio depôs à PF, declarou que não sabia
o que havia naquele recipiente e que apenas supôs a destinatária final.
Dias depois da primeira
revelação, soube-se que não era apenas um pacote, e sim dois. Ambos com peças
valiosas da marca suíça Chopard, mas com a diferença de que a alfândega flagrou
apenas um —o outro
passou às escondidas para o acervo pessoal de Bolsonaro.
Para espanto ainda maior,
descobriu-se semanas depois que não se tratava de um ou de dois kits com joias,
mas de três —o terceiro tendo sido entregue em 2019 ao próprio Bolsonaro, que
atribui o gesto à relação de amizade que construiu com o mundo árabe.
Troca de presentes entre
chefes de Estado é prática antiga e corriqueira. Tanto que o ex-presidente
acumulou, em sua passagem pelo Planalto, mais de 19 mil itens.
A trivialidade desse tipo
de intercâmbio, contudo, só reforça as suspeitas no caso. Afinal, por que se
confundir com versões diferentes ao tentar justificar algo em tese tão simples?
E por que mobilizar tanta gente para, no apagar das luzes do mandato, recuperar
as joias retidas no aeroporto?
Entende-se, assim, por que o caso chamou a atenção não só da PF mas também do Ministério Público Federal e da Controladoria-Geral da União. A essas investigações ainda se somam outras tantas no Supremo Tribunal Federal, no Tribunal Superior Eleitoral e na Justiça comum. Não é pouca coisa.
Retrocesso inaceitável no saneamento
O Estado de S. Paulo
Decreto de Lula que desfigura o Marco do
Saneamento atende a demandas de empresas estatais incapazes e pode afastar
investidores privados numa área fundamental do País
Fiel a uma agenda de atraso, o presidente
Lula da Silva baixou dois decretos, na quarta-feira, mudando pontos essenciais
do Marco do Saneamento, que abrem caminho para disputas judiciais e maior risco
de problemas no atendimento a populações em regiões carentes de abastecimento
de água e esgoto, além de desestimular investimentos.
Um dos dois itens mais importantes alterados
nos dispositivos legais é a permissão para que empresas estatais regularizem
contratos precários. A nova lei do saneamento, de 2020, determina que
prestadoras de serviços são obrigadas a comprovar que têm condições de fazer os
investimentos necessários à universalização do fornecimento de água e esgoto
dentro dos prazos legais. A primeira avaliação desse requisito mostrou que 20%
dos contratos com municípios apresentaram irregularidades, entre 2021 e 2022 –
são 1.113 cidades com esse problema. O decreto de Lula desfaz esse processo, e
teme-se que os novos critérios, mais frouxos, beneficiem contratos considerados
irregulares anteriormente.
A segunda alteração anunciada pelo
presidente permite que companhias estaduais prestem seus serviços em microrregiões
sem a necessidade de licitação, bastando uma autorização da entidade
interfederativa do bloco regional, o que obviamente fere a Constituição. O tema
já é alvo de intensa disputa jurídica, inclusive com uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade levada ao Supremo Tribunal Federal pela associação que
representa as concessionárias privadas, porque o governo da Paraíba já estava
seguindo a norma agora determinada pelo decreto presidencial.
O Marco do Saneamento foi aprovado por uma
larga margem pelo Congresso Nacional em 2020 e, diante disso e do ambiente
aparentemente pouco propício a mudanças entre senadores e deputados, o governo
federal decidiu impor as mudanças por decreto. Abre-se, dessa forma, a porta
para novas disputas no Judiciário que podem atrasar ainda mais os necessários
investimentos em saneamento.
Dados do Instituto Trata Brasil apontam
para uma situação desalentadora nesse campo: o País ainda tem quase 35 milhões
de habitantes sem acesso à água tratada, 100 milhões (quase metade da população)
sem coleta de esgotos e apenas 46% do esgoto é tratado. E mais: doenças
relacionadas ao saneamento ambiental inadequado foram causa direta de quase 1%
das mortes no Brasil entre 2008 e 2019. Foram 135 mil óbitos nesse período, uma
média de 11,2 mil ao ano, de acordo com o IBGE.
Nos últimos anos, o setor privado
demonstrou que tem interesse e recursos para mudar esse terrível panorama. No
entanto, com os decretos de Lula, que mudam as regras do jogo com o jogo em
andamento, há razões para esperar maior cautela da parte das companhias
privadas diante do que pode se considerar uma concorrência menos igual. Até
agora, as estatais, até por restrições fiscais, veem-se amarradas a orçamentos
muito menores do que seria o necessário para melhorar o atendimento.
Entre 2010 e 2017, 15 empresas de
saneamento estatais investiram em média R$ 7,4 bilhões ao ano, menos da metade
dos R$ 20 bilhões determinados pelo plano nacional de saneamento. As exceções
são as grandes estatais, como a Sabesp, que caminha para a privatização.
Ao divulgar as novas regras, o Palácio do
Planalto explicou que é preciso evitar que serviços e investimentos sejam
suspensos e que haverá “rigorosa fiscalização”, o que é obviamente uma piada de
mau gosto. O palavrório mal esconde que o verdadeiro problema, para o governo,
é a perspectiva de envolver investimentos privados e de reduzir a presença do
Estado na área de saneamento básico, o que causa arrepios nos estatólatras
petistas. Para essa turma, não interessa se as estatais, depois de décadas de atuação
medíocre, foram incapazes de prover água limpa e tratamento de esgoto adequado
para grande parte da população, mesmo com todo o tratamento privilegiado que
tiveram. O que importa é que elas continuem existindo, servindo de cabide de
emprego para os companheiros, em detrimento da saúde dos brasileiros pobres.
Transparência induz o desenvolvimento
O Estado de S. Paulo
Brasil segue mal em ranking de percepção da
corrupção. Os primeiros colocados têm em comum a transparência como princípio
da administração pública. Deveríamos imitá-los
O Brasil aparece num desonroso 94.º lugar,
entre 180 países, no ranking da Transparência Internacional que mede a
percepção, por parte de agentes do setor privado, de corrupção no setor
público. As consequências negativas desse estado de espírito nacional são
visíveis há muito tempo, variando da desconfiança generalizada sobre a
honestidade dos agentes públicos até a frustração de negócios promissores por
insegurança. Não à toa, o Brasil está mais ou menos na mesma posição nesse
ranking, o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), há alguns anos.
Os problemas brasileiros em relação à
corrupção são bastante conhecidos, fruto de secular confusão entre o público e
o privado, que transforma o Estado em balcão de negócios em vez de ser o
estruturador político das relações entre os cidadãos. Talvez fosse o caso,
então, de visitar os primeiros colocados no ranking da Transparência
Internacional para saber o que deveríamos fazer para superar esse vergonhoso
atraso.
A edição de 2022 mostra a Dinamarca em
melhor situação, seguida pela Finlândia. Outros dois países nórdicos − Noruega
e Suécia − ocupam respectivamente a quarta e a sexta posição como nações mais
íntegras. Em comum, as quatro nações europeias dispõem de leis de acesso à
informação devidamente consolidadas e adotam a transparência como princípio da
administração pública. Talvez por isso ostentem indicadores de qualidade de
vida que servem de referência para o mundo.
A transparência é um freio à má conduta e
arma poderosa contra a corrupção. Não à toa, países com menos casos de
malversação são os que maximizam mecanismos que dão publicidade aos atos de
governo e à alocação de verbas. Corretamente, parte-se da premissa de que a
sociedade só tem a ganhar quanto mais bem informada estiver − algo que regimes
autoritários rejeitam e tratam de impedir.
Há evidências de sobra de que o controle
social é capaz de barrar desvios. Daí a recomendação para que administrações
públicas se submetam ao escrutínio popular. A análise do ranking do IPC, no
entanto, sugere que as consequências positivas podem ser ainda maiores. À
medida que o princípio da transparência serve de base para a organização
estatal − uma realidade identificada nos países nórdicos −, reforça-se um
círculo virtuoso que induz o desenvolvimento econômico e social.
É disso que o princípio da transparência é
capaz − e por isso o Brasil precisa avançar nessa agenda, revendo práticas
nebulosas, por exemplo, no manejo do Orçamento da União e implementando, sem
subterfúgios, a Lei de Acesso à Informação (LAI). O princípio da transparência
não serve somente para frear ilicitudes, embora isso seja extremamente
bem-vindo em um país onde a corrupção é problema renitente.
Na verdade, o que está em jogo é a criação
de um ambiente institucional, administrativo, político e econômico capaz de
otimizar o uso dos recursos públicos, atrair investimentos privados e fazer
girar a roda da economia − desafios que se impõem a qualquer governo independentemente
da cor partidária. Mais ainda em meio a restrições fiscais que limitam a
capacidade de atuação do Estado brasileiro.
Vale notar que a transparência é também uma
regra de mercado que promove a concorrência e contribui para baixar preços − ao
mesmo tempo que dá maior segurança aos agentes privados, fomentando a
estabilidade e a previsibilidade que tanto favorecem o ambiente de negócios. Em
seu relatório de 2022, a Transparência Internacional destacou que “países com
níveis mais altos de corrupção geralmente apresentam níveis maiores de presença
do crime organizado”. Pode-se afirmar que governos pautados pelo princípio da
transparência representam um antídoto a isso.
O Brasil teve uma “década perdida” no
combate à corrupção, segundo a Transparência Internacional. Um dos maiores
retrocessos foi obviamente o orçamento secreto. Nem a decisão do Supremo
Tribunal Federal que considerou tal artimanha inconstitucional inibiu o
Congresso, com a cumplicidade de um governo enfraquecido, de inventar novas
maneiras de dispor dos recursos públicos de forma opaca. É na sombra que viceja
o subdesenvolvimento.
Derrota de Lira, vitória da Constituição
O Estado de S. Paulo
Governo e Congresso fecham acordo para
instalação de comissões mistas que tratarão de MPs ‘urgentes’
O ministro das Relações Institucionais,
Alexandre Padilha, anunciou na terçafeira passada que o governo e a cúpula do
Congresso, enfim, chegaram a um acordo para a instalação das comissões mistas
que tratarão de quatro medidas provisórias (MPs) tidas como “urgentes” pelo
Planalto. São elas: MP 1.154/23, que reestrutura os Ministérios e cria novas pastas;
MP 1.160/23, que promove mudanças no Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (Carf); MP 1.162/23, que recria o Minha Casa, Minha Vida; e MP
1.164/23, que define as novas regras do Bolsa Família.
Diante da pirraça do presidente da Câmara,
Arthur Lira (PP-AL), que, movido exclusivamente por seu projeto pessoal de
poder, fez de tudo para dificultar a instalação das comissões mistas e capturou
o andamento da agenda legislativa, o governo se viu obrigado a criar essa
figura esdrúxula da “MP urgente”, como se toda medida provisória, à luz da
Constituição, não tivesse de versar, obrigatoriamente, sobre questões
relevantes e urgentes para o País. O presidente Lula já assinou 12 medidas
provisórias nesses primeiros meses de mandato. No entanto, apenas a tramitação
daquelas quatro, por ora, está garantida.
Outro sinal desses tempos esquisitos é o
fato de que, a despeito do acordo em torno da urgência da deliberação sobre as
quatro MPs prioritárias para o governo, as comissões mistas só serão instaladas
pelo presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSDMG), após a Semana Santa.
Ora, que urgência é essa que pode esperar o término de um feriado prolongado?
De qualquer modo, ao fim e ao cabo, a
Constituição saiu vitoriosa desse imbróglio. O artigo 62 sempre esteve redigido
em português cristalino. Ele dispõe que “as medidas provisórias terão sua
votação iniciada na Câmara dos Deputados” (parágrafo 8.º) e que “caberá à
comissão mista de deputados e senadores examinar as medidas provisórias e sobre
elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo
plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional” (parágrafo 9.º).
Durante cerca de dois anos, entretanto,
esse rito foi temporariamente alterado em virtude da pandemia, o que levou a um
acúmulo de poder pela Câmara, especificamente por seu presidente. Nesse período
excepcional, Lira passou a controlar a indicação de relatores para as MPs e a
determinar seu ritmo de tramitação e o grau de alterações do texto original.
Isso porque o Senado, como Casa revisora, passou a ter pouco tempo para
deliberar sobre as MPs que, não raro, a Câmara encaminhava perto do prazo de
caducidade (120 dias).
Em boa hora, o sr. Arthur Lira perdeu essa
batalha para a Constituição e, consequentemente, para o melhor interesse do
País. Não havia o menor cabimento em prolongar um estado de emergência que,
factualmente, não existia mais. E, menos ainda, em bagunçar um governo que
ainda nem completou 100 dias, fazendo perder validade MPs que remodelam o
primeiro escalão da administração federal e lançam as bases do novo Bolsa
Família, do qual dependem tantos milhões de brasileiros para viver.
Nenhum comentário:
Postar um comentário