O Estado de S. Paulo
Dois crimes recentes disputam a primazia do
horror, mas nada supera em vileza e terror a tragédia de Blumenau
Os crimes aberrantes devem ser recordados
para que jamais se repitam. Evitar a repetição, porém, leva a investigar as
origens, ir às causas, em especial as difusas e, por isso, diretas ou
permanentes, pois, ao serem profundas, não são visíveis.
Refiro-me a dois crimes aberrantes
perpetrados em São Paulo dias atrás, que permanecem atuais pela estarrecedora
brutalidade em si.
Primeiro, em plena sala de aula, um menino
de 13 anos assassinou a facadas uma professora de 71 anos e feriu outras três.
Logo, como na sequência de um filme de terror, um juiz acorrentava a própria
esposa para, a socos e bofetadas, obrigá-la ao ato sexual, num sadismo
aberrante substituindo a beleza do erotismo amoroso.
Ambas as situações disputam a primazia do horror. No primeiro caso, os escabrosos detalhes levam a uma pergunta: em que sociedade vivemos para que um menino imberbe, ainda pré-adolescente, se transforme em requintado criminoso?
Sim, pois a morte a facadas é requintada em
si, exigindo presteza manual e longos segundos para insistir na morte. Não é
como um tiro, em que se aperta o gatilho e a bala faz o resto. A facada exige
repetição contínua até chegar à morte.
Mais ainda: como um menino de apenas 13
anos pode ter acumulado desgostos e incertezas em condições de gerar ódio e
despertar a maldade de Caim que levamos dentro de nós?
Trata-se de um caso patológico, de um surto
psicótico, dirão todos. A patologia assassina, porém, não nasce ao acaso. Tem
raízes profundas no dia a dia, crescendo nas invencionices e mentiras das
chamadas redes sociais e naquilo que mais ocupa nosso interesse, que é a
televisão. Após o trabalho diário, é a TV que nos dá lazer e descanso, mas nela
somos levados a um mundo de violência. As séries televisivas (ou até as novelas
com excelente dramaturgia) exibem traições e tiros, e, mesmo com o triunfo do
bem, o desenrolar violento passa a habitar nosso inconsciente.
Nada, no entanto, supera a bala de prata
para matar lobisomens e monstros do tipo. A carga tributária no Brasil está em
33,9%. Usando as palavras de Tebet, “para agradar a todos”, em níveis federal,
estadual e municipal, será preciso aumentá-la para mais perto de 40%. Ela tem
razão, será uma bala de prata no coração do cidadão brasileiro. E, como dizia
Bilac: “Criança! não verás país nenhum como este”. Nenhum país do mundo tem uma
carga tributária tão pesada, porque ninguém é capaz de suportála. A ministra do
Planejamento pode planejar um belo discurso fúnebre para a nossa economia.
Jorge Alberto Nurkin jorge.nurkin@gmail.com
São Paulo maldade dos vídeo jogos (que
chamamos de video games, em inglês, numa violência verbal ao nosso idioma) em
que ganha quem mata mais na tela do celular. A partir da tenra infância, isso
se transforma num convite para matar de verdade na vida adulta, pois basta
apertar o gatilho...
Trata-se da banalização da vida em forma
contínua, por uma parte, e, por outra, de entronizar o assassinato como
normalidade.
O caso do juiz sádico mostra, além de tudo,
outra aberração que espalha seus requintes perversos sobre a sociedade.
Pergunto: como pode um magistrado, que vai julgar os demais (definindo o certo
e o errado), portar-se de forma aberrante na vida pessoal?
A exigência de vida “ilibada” não é
privativa para a escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal, mas recai
logicamente na totalidade dos magistrados. Só assim o Poder Judiciário atenderá
à sua verdadeira função.
Seria insólito que a sociedade tivesse de
julgar o comportamento dos magistrados, mas é impossível deixar de aplaudir a
decisão do Tribunal de Justiça de suspender das funções o juiz sádico.
A aberração não pode guiar a intimidade
daqueles cuja função seja decidir sobre o comportamento da sociedade. Não se
deve exigir que um juiz chegue à perfeição absoluta ou, menos ainda, que se
transforme em pequena divindade. Não se pode, porém, admitir o oposto. A
aberração é o crime dos crimes, ou a própria perversão da perversidade.
Existe, no entanto, um componente histórico
na formação da violência na vida social e que, de fato, principia na infância
da vida familiar. Pergunto: o que são, em verdade e no mais profundo de si,
aquelas histórias infantis repetidas ao longo dos anos (ou até dos séculos...)
que contam dos perigos do lobo mau que acaba comendo a indefesa vovozinha para quem
a netinha levava deliciosos docinhos?
Não seremos nós mesmos que cultivamos a
violência, até sem a perceber?
As histórias infantis estão abarrotadas (ou
infestadas) de medo ou até de horror. Mesmo assim, são transmitidas de geração
em geração. A transmissão do horror não pode ser encarada tal qual uma vacina
que, ao ser aplicada, nos torna resistentes ao mal e, assim, nos livra da
enfermidade que provoca.
A verbalização do horror acaba nos
familiarizando com o próprio horror e, assim, o incorpora ao nosso cotidiano,
como se fizesse parte da vida. No caso concreto do juiz sádico, as cenas
filmadas com câmeras ocultas mostraram (na televisão) a repetição contínua da
brutalidade, com a mulher submetida ao suplício.
Direta ou indiretamente, tratava-se da antessala
do feminicídio, em que a mulher recebia o tratamento de coisa, não de gente,
pelo fato único de ser mulher...
Nada, porém, supera em vileza e terror a
tragédia de Blumenau (SC), onde um homem adulto, com uma machadinha, assassinou
quatro crianças numa creche, num ato abjeto e inominável em que o criminoso vai
além do crime em si.
*Jornalista, escritor, prêmio Jabuti de Literatura
2000 e 2005, prêmio Apca 2004, é professor aposentado da Universidade de Brasília
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