Senado tem de vetar mudanças na Lei da Mata Atlântica
O Globo
Emendas em MP aprovada na Câmara com aval
do Planalto afrouxam controle de desmatadores
Restam apenas 24% da cobertura vegetal
nativa da Mata Atlântica, mas ainda há quem queira continuar a derrubá-la. A
mais nova manobra dos desmatadores ocorreu no Congresso, com a conversão em lei
da Medida Provisória (MP) 1.150, emitida ainda no governo Bolsonaro.
A MP foi o veículo usado por parlamentares
a serviço dos interesses dos desmatadores para anexar emendas sem relação
direta com o teor do texto, os proverbiais “jabutis”. O objetivo era alterar o
artigo 14 da Lei da Mata Atlântica, de 2006, para facilitar o desmatamento, sob
o pretexto da execução de projetos de turismo, estradas, atividades
agropecuárias e toda sorte de obras que põem em risco o meio ambiente.
Relatada pelo deputado Sergio Souza (MDB-PR), a conversão da MP em lei, da forma como foi feita, representa, nas palavras de Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, o “sonho de consumo” da bancada da Câmara a serviço dos interesses de desmatadores.
Numa prova da fragilidade do governo Lula
na Câmara, o Planalto aceitou a proposta de manter o texto como está, com o
enfraquecimento da Lei da Mata Atlântica. Em troca, deputados do União Brasil
firmaram o compromisso de que, se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetar
trechos da lei depois de ela passar pelo Senado, os vetos não serão derrubados
no Congresso. O melhor teria sido não aceitar tal barganha. Mas o Planalto, sem
base parlamentar confiável, preferiu acolher os estranhos termos do acordo,
cumprido com o voto do PT. A escolha de Efraim Filho (União-PB) para relatar o
projeto no Senado não anima os ambientalistas.
É lamentável que Lula tenha de impor vetos
à lei. De acordo com Ribeiro, por ocasião da tramitação do Código Florestal, a
presidente Dilma teve de vetar trechos, e a lei virou uma “colcha de retalhos”.
“No Congresso parece que a terra ainda é plana”, diz Luís Fernando Guedes
Pinto, diretor executivo da SOS Mata Atlântica.
Ele considera — com razão — um contrassenso
revogar a proteção da Mata Atlântica, enquanto a Noruega, um dos financiadores
do Fundo Amazônia, avisou que voltará a apoiar projetos ambientais no Brasil
por confiar na promessa do governo de combater o desmatamento. Em nota técnica
enviada aos parlamentares, a SOS Mata Atlântica lembra que Curitiba enfrentou
uma seca de quatro anos por ter permitido o desmatamento nas cabeceiras e
proximidades dos rios.
As emendas à MP permitem, entre outros
retrocessos, a destruição de vegetação primária e secundária em regeneração
avançada sem a necessidade de parecer técnico de órgão ambiental estadual (a
função passará aos municípios, mais permeáveis a pressões). Também prorroga
pela sexta vez o prazo para produtores rurais se inscreverem no Programa de
Regularização Ambiental (PRA), tornando sem efeito esse dispositivo do Código
Florestal.
Uma alternativa em estudo pela SOS Mata
Atlântica é arguir a inconstitucionalidade na tramitação da lei. Por ser uma
legislação especial, qualquer mudança na Lei da Mata Atlântica teria
necessidade de passar pelas comissões de Constituição e Justiça e de Meio
Ambiente antes de ir a plenário. Não foi o que aconteceu. Está aberta,
portanto, a porta para a judicialização. Claro que a melhor alternativa é o
Senado, Casa revisora do Congresso, restabelecer o bom senso e manter o texto
original da Lei da Mata Atlântica.
Ocidente não deve aceitar arbítrios da
China contra uigures até fora do país
O Globo
Depois de relatório devastador da ONU,
jornal denuncia espionagem de exilados da minoria étnica
Em agosto do ano passado, em seu último dia
no posto de Comissária dos Direitos Humanos das Nações Unidas, Michelle
Bachelet, ex-presidente chilena, divulgou relatório devastador, com acusações
gravíssimas de crimes contra a humanidade atribuídos à China na repressão à
minoria étnica uigur, muçulmanos que habitam o Noroeste do país, sobretudo a
província de Xinjiang.
O relatório confirmou denúncias feitas há
anos por organizações de direitos humanos sobre pressão psicológica, tortura,
violência sexual e internação em “campos de reeducação”, similares aos criados
na União Soviética para doutrinar quem fosse considerado ameaça ao comunismo.
Embora tivesse chamado a atenção mundial para os arbítrios chineses contra os
uigures, o documento teve pouca consequência, já que a China é membro
permanente do Conselho de Segurança da ONU, com poder de veto sobre qualquer
resolução.
No início da semana, uma nova denúncia pôs
em evidência o drama dos uigures. De acordo com relatos publicados pelo jornal
britânico Financial Times (FT), os serviços de inteligência chineses exercem
pressão até sobre uigures que já saíram da China. É o caso de Yasin Üztürk, que
vive desde 2016 em Istambul, Turquia, onde ganha a vida com uma barbearia. De
acordo com o FT, ele evitava protestos políticos e nada falava sobre os abusos
em Xinjiang.
Apesar do cuidado, surpreendeu um dos
clientes tirando fotos suas escondido. No celular, encontrou imagens da
barbearia e mensagens de um espião chinês pedindo mais informações sobre o
barbeiro e ordenando que “terminasse o trabalho”, um termo dúbio, ameaçador.
“Todo mundo suspeita do outro”, diz Üztürk. Natice, mulher dele, acredita que
as conversas na barbearia interessam aos espiões.
A experiência de Üztürk é compartilhada por
centenas de milhares de uigures que saíram da China em busca de paz e
segurança, revela uma pesquisa da Universidade de Sheffield com 120 uigures
residentes na Turquia e no Reino Unido. A repressão é ampla. Os residentes no
exterior não apenas são pressionados a nada falar sobre abusos em Xinjiang, mas
também convocados de várias formas a ser informantes. Se recusam, diz a
pesquisa, a família sofre ameaças na China. Se colaboram, facilita-se o contato
com os parentes em Xinjiang. A reportagem do FT informa que 80% dos 50 mil
uigures na Turquia já foram ameaçados para ficar calados ou entrar para a rede
de informantes.
As acusações contra a China revelam a faceta mais nefasta da potência em ascensão e maior parceiro comercial do Brasil, sob o regime autoritário de Xi Jinping. Não há dúvida de que o Ocidente terá de aprender a conviver com esta China. Mas não pode transigir na denúncia e no combate a atos hediondos como a perseguição aos uigures.
Melhor, com riscos
Folha de S. Paulo
Economia global resiste, mas juros são
ameaça; Brasil tem perspectiva modesta
A mais recente revisão do
cenário mundial feita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) sugere
resiliência do crescimento econômico e queda gradual da inflação, mas com
riscos importantes para o restante deste ano e para 2024.
Em relação à projeção de outubro do ano
passado, a expectativa para o avanço do Produto Interno Bruto global subiu de
2,7% para 2,8%. Embora se observe uma desaceleração em relação ao ritmo do ano
passado, de 3,4%, a análise indica permanência da demanda nas maiores
economias.
Nas três principais regiões, a situação é
melhor que a esperada há alguns meses. Nos Estados Unidos ainda se vê
sustentação em razão da poupança acumulada pelas famílias durante a pandemia;
na Europa não ocorreu uma crise de energia em razão do inverno ameno; na China
observa-se uma retomada importante depois do relaxamento das restrições
sanitárias.
O gigante asiático deve crescer 5,2% neste
ano, depois de amargar apenas 3% em 2022. O impacto positivo chinês se estende
para o conjunto dos países emergentes, que também devem ter bom desempenho, com
alta de 3,9% em 2023.
A instituição projeta em seu cenário-base
uma continuidade dessa trajetória de retomada no ano que vem, quando a economia
mundial aceleraria para 3%. Tal resultado seria muito positivo, mas há alertas
importantes.
Os principais riscos para uma recaída
recessiva derivam da lenta queda da inflação e dos impactos defasados do aperto
monetário, sobretudo nos EUA, onde os juros subiram de zero para 5% ao ano em
pouco mais de 12 meses —o que já provoca estresse financeiro, evidenciado pelos
problemas em bancos regionais mais frágeis.
A inflação mundial deve cair de 8,77% em
2022 para 7% agora e 4,9% em 2024, patamar ainda desconfortável diante das
metas dos principais bancos centrais. A força do emprego e dos salários
pressiona os preços dos serviços.
Por isso, as taxas de juros devem
permanecer altas nos principais centros financeiros, com consequências difíceis
de prever. Depois de uma década de juros muito baixos (2008-2019), não se sabe
como a contração monetária ainda em curso impactará a saúde de bancos e das
empresas.
O ambiente ainda é perigoso, portanto. Para
o Brasil, o cenário do FMI é de crescimento baixo neste ano, de apenas 0,9%,
mas haveria uma melhora em 2024, para 1,5%.
Construir tal caminho, e idealmente superar
o prognóstico, dependerá de boa condução local da política econômica. Eliminar
quaisquer dúvidas sobre o equilíbrio fiscal e conduzir
reformas, sobretudo a tributária, são os objetivos essenciais neste
momento.
Viagem infernal
Folha de S. Paulo
Prevenção e agilidade do Judiciário podem
conter alto índice de tráfico humano
"Fiquei no porão 9 meses e 28
dias". Esse é o relato da brasileira Luana Maciel, 39, vítima de tráfico
internacional de pessoas na Flórida, nos EUA. "Ficávamos no porão e só
podíamos subir com a permissão dele. Não podíamos sair sozinhas, falar com
vizinhos. Ele guardava os nossos passaportes e o cartão de crédito", conta
a sobrevivente.
Apesar de chocante, o caso de Maciel não é
isolado. Entre 2011 e
2019, de acordo com boletim do Ministério de Saúde, 1.302 episódios de tráfico
de pessoas foram registrados no Sistema de Informação de
Agravos de Notificação.
Segundo a lei brasileira, o crime se
caracteriza por "agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir,
comprar, alojar ou acolher pessoa mediante grave ameaça, violência, coação,
fraude ou abuso" para finalidades que vão de exploração sexual a remoção
de órgãos e trabalho análogo à escravidão.
Observar as circunstâncias subjacentes ao
tráfico e punir seus perpetradores são medidas essenciais.
Um dos principais gargalos é a duração
média dos processos judiciais no Brasil, de cerca de 11 anos. Foi o que
concluiu um estudo feito em parceria entre a Organização Internacional para as
Migrações, o Conselho Nacional de Justiça e a Clínica de Trabalho Escravo e
Tráfico de Pessoas da Universidade Federal de Minas Gerais, que analisou a
fundo 144 ações penais no país envolvendo tráfico internacional de pessoas.
A morosidade flagrante expõe a falta de
preparo técnico das instâncias policiais e de Justiça, tanto aqui quanto nos
países onde as vítimas são mantidas em privação de liberdade. Entre os
principais destinos, estão Espanha, Portugal, Itália, Suíça, Suriname, Estados
Unidos e Israel.
A maioria das vítimas é mulher (688 de 714
pessoas ao todo), e 97,22% dos casos envolviam exploração sexual. Fortalecer
canais de cooperação internacional para prevenção e identificação de tráfico
humano é fundamental.
Embora
importante, a punição não é suficiente. Muitas vezes, os
agenciadores são pessoas próximas, como cônjuges, namorados, amigos e até
familiares.
Os criminosos ganham a confiança das vítimas aos poucos, com promessas de melhores condições de vida em outro país. Identificar cedo os sinais de alerta e ter acesso a uma rede de apoio pode ajudar a impedir que graves infrações aos direitos humanos, como o caso de Maciel, se repitam.
Razão e sensibilidade
O Estado de S. Paulo
O combate à violência nas escolas requer
sensibilidade, inteligência e responsabilidade.
Brasil afora, incontáveis mães e pais estão
em pânico após os episódios de violência extrema em escolas de São Paulo e Santa
Catarina. A disseminação de boatos sobre a ameaça de novos ataques, graças à
ganância e à irresponsabilidade criminosa de empresas de tecnologia como o
Twitter, entre outras, só faz aumentar o desespero de todos os que têm filhos
em idade escolar.
O medo e a sensação de impotência desses
pais, sentimentos que levaram muitos deles a suspender a ida de seus filhos às
escolas, são absolutamente legítimos diante de circunstâncias tão dramáticas.
Afinal, não há quem não se apavore apenas por pensar na perspectiva de ter um
filho assassinado enquanto brinca com os amigos no pátio da escola ou assiste
às aulas em uma manhã qualquer.
O que é inaceitável é a exploração desses
sentimentos por quem, ainda que não tenha a intenção, sucumba à lógica do
terrorismo, propondo soluções simples – e erradas – para um problema que é
sabidamente complexo.
É muito tentadora, por seu forte apelo às
emoções parentais, a ideia de subir muros, instalar detectores de metal ou
distribuir seguranças armados pelos pátios escolares. Mas essas são medidas
que, quando muito, só oferecem um conforto momentâneo para corações aflitos. A
sociedade precisa ser engajada em um debate honesto sobre soluções duradouras
para o problema, sem reducionismos.
Na contramão da abordagem simplista, o
presidente Lula da Silva mobilizou seu governo na direção que este jornal
considera ser a correta para o enfrentamento da violência nas escolas. Lula
determinou que o ministrochefe da Casa Civil, Rui Costa, organize uma reunião
no próximo dia 18 envolvendo ministros, os presidentes da Câmara, do Senado e
do Supremo Tribunal Federal, todos os governadores e representantes dos
prefeitos. O objetivo do encontro é realizar o que o presidente chamou de
“reflexão nacional” sobre os ataques nas escolas e estudar como cada ente pode
contribuir para evitar novos ataques e acalmar a população.
A união entre as cúpulas dos Poderes e os
entes federativos demonstra o acerto da dimensão dada pelo governo ao problema
da violência nas escolas. Também é correto o diagnóstico de que as saídas
dependem de uma abordagem responsável e multidisciplinar da questão. Ao
Estadão, Rui Costa enfatizou que “não se trata só de uma questão policial, de
segurança, mas de algo muito mais complexo”. No Estado de São Paulo, o
governador Tarcísio de Freitas e o prefeito da capital, Ricardo Nunes,
demonstraram ter a mesma compreensão de que a solução do problema da violência
nas escolas passa pela promoção de uma “cultura de paz” e de ações preventivas,
como o reforço do atendimento psicossocial à comunidade escolar, entre outras
medidas.
A violência nas escolas, de fato, não é
algo que se resolva distribuindo agentes armados intra ou extramuros. Ao
contrário: mais armas podem provocar mais mortes. Fortificar instituições de
ensino deturpa o papel do ambiente escolar na formação dos pequenos cidadãos.
Ademais, as ameaças, na esmagadora maioria dos casos, estão dentro das próprias
escolas e não raro escapam do radar de pais, professores e psicólogos.
Crianças e adolescentes escondiam seus
medos, raivas, angústias e decepções em diários de papel, ao abrigo de olhos
curiosos. Há muito, isso ficou para trás. Hoje, raros são os jovens que não
expõem suas intimidades nas redes sociais. Portanto, é possível monitorá-los e
avaliar comportamentos que fujam do padrão. Nesse sentido, chamar as empresas
de tecnologia à responsabilidade é chave para a solução do problema. De acordo
com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, as redes sociais
serão cobradas por “proatividade” na identificação e remoção de conteúdos que
estimulem a violência. Longe de ser a única, trata-se de medida de suma
importância para evitar novos massacres nas escolas, pois a exposição é uma das
forças motrizes dos extremistas homicidas.
O pânico nunca é um bom conselheiro. O bom
combate à violência nas escolas requer sensibilidade, inteligência e, principalmente,
responsabilidade.
À espera do Desenrola
O Estado de S. Paulo
Empobrecida, a classe média ainda aguarda
medidas que a ajudem a se recuperar da pandemia, do crescimento pífio e da
recessão. Voltar a ter acesso a crédito talvez seja a principal
Com muita razão, o presidente Lula da Silva
cobrou mais agilidade do governo para finalizar os detalhes do Desenrola,
programa de renegociação de dívidas que visa a reduzir a inadimplência das
pessoas físicas e impulsionar a economia. “Vamos desenrolar, pelo amor de
Deus”, disse o petista, dirigindo-se ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
O atraso no Desenrola impediu que o plano
figurasse entre as promessas de campanha cumpridas na cerimônia de balanço dos
100 primeiros dias da gestão de Lula. A proposta, anunciada para rebater a
principal bandeira de Ciro Gomes (PDT) na disputa eleitoral, estava prevista
para ser lançada em fevereiro, mas até agora não saiu do papel. O secretário de
Política Econômica
da pasta, Guilherme Mello, disse que o
programa estaria conceitualmente pronto, pendente apenas de soluções técnicas a
serem resolvidas nos próximos meses. Mas tudo indica que esses problemas não
parecem ter solução tão simples.
A ideia do governo é criar condições para
que a plataforma digital do Desenrola permita a realização de um leilão em
bloco das dívidas. De um lado, credores, como concessionárias de serviços
públicos e varejistas, ofereceriam desconto sobre as dívidas de pessoas
físicas; de outro, bancos e instituições financeiras quitariam esses débitos e
passariam a cobrar os devedores inadimplentes por meio de novas operações, mais
baratas e com prazos mais longos.
O governo, no entanto, só poderia garantir
dívidas para pessoas com renda de até dois salários mínimos e dívidas de até R$
5 mil. O Tesouro teria condições de oferecer garantias entre R$ 11 bilhões e R$
15 bilhões. O restante seria lastreado em créditos tributários das instituições
financeiras, estimados em cerca de R$ 100 bilhões.
Muito além das dificuldades operacionais
para fazer credores e devedores se encontrarem na plataforma digital, uma
desculpa no mínimo esdrúxula, as incertezas dos bancos sobre a viabilidade das
operações sem garantia do Tesouro estariam por trás do atraso no lançamento do
programa. No governo, há quem preveja o Desenrola apenas para o segundo
semestre deste ano, algo inaceitável ante os recordes de inadimplência que têm
sido registrados nos últimos meses.
Enquanto o governo bate cabeça na
operacionalização do Desenrola, dados mais recentes da Serasa indicam que 70,5
milhões de brasileiros estavam com o nome sujo na praça em fevereiro – 430 mil
a mais que no mês anterior. O número só cresce ao menos desde janeiro do ano
passado e retroalimenta a inadimplência das empresas, que passaram a enfrentar
novas restrições desde a fraude bilionária das Lojas Americanas.
Despesas típicas de início do ano, como
pagamento de impostos e reajuste de mensalidades escolares, contribuíram para
apertar ainda mais o orçamento dos brasileiros. Na média nacional, 43,36% da
população adulta está inadimplente, mas Estados como Rio de Janeiro, Amazonas e
Amapá já registram índices superiores a 52%.
Com inflação em rota de desaceleração, mas
ainda elevada, juros altos e sem perspectiva imediata de redução e renda ainda
distante de uma recuperação digna de nome, parece evidente que o cenário requer
uma atuação prioritária do governo. Renegociações realizadas por instituições
privadas não darão conta de reverter esse cenário.
O comportamento mais benigno do IPCA, que
registrou alta de 4,65% nos 12 meses encerrados em março, finalmente dentro do
intervalo de tolerância da meta de inflação, aliado à apresentação do novo
arcabouço fiscal pelo governo, foi bem recebido pelo mercado financeiro e derrubou
a cotação do dólar à vista a menos de R$ 5,00. Na outra ponta, famílias mais
vulneráveis têm sido assistidas com a reformulação do Auxílio Brasil e sua
reconversão ao Bolsa Família.
Empobrecida e endividada, a classe média
ainda aguarda políticas públicas que a ajudem a se recuperar de anos que
alternaram crescimento pífio e recessão, agravados pelos efeitos da pandemia de
covid-19. Voltar a ter acesso ao crédito talvez seja a principal e a mais
efetiva delas.
Ameaça de protecionismo
O Estado de S. Paulo
Relatório suíço mostra que desequilíbrios
econômicos e tensões políticas elevam restrições comerciais
A preocupação com a desaceleração econômica
neste ano e com a inflação maior está levando governos mundo afora a adotar
restrições a exportações de produtos essenciais como alimentos, medicamentos,
combustíveis e matérias-primas minerais. Essa tendência já tinha sido
constatada durante a pandemia, mas se acelerou com a invasão da Ucrânia pela
Rússia, há pouco mais de um ano. Também se constata maior número de barreiras
às importações de bens essenciais em uma tentativa de alguns países de
incentivar investimentos na produção local desses produtos. É o que demonstra
relatório da Global Trade Alert, entidade criada em 2009 para monitorar o
protecionismo global, ligada à Universidade de St. Gallen, na Suíça.
O comércio internacional já apresenta um
movimento significativo de redução de ritmo de negócios e as perspectivas não
são de melhora para os próximos meses. A Organização Mundial do Comércio
anunciou há dias que prevê um aumento modesto, de apenas 1,7%, no crescimento
do comércio entre países, depois de uma expansão de 2,7% no ano passado.
Para o Brasil, qualquer notícia sobre mais
protecionismo não é, obviamente, boa. Entraves às exportações adotados por
outros países podem tanto dificultar a compra no exterior de insumos dos quais
o País é dependente, como na área da saúde, como o encarecimento das
importações, com impacto inflacionário.
O País depende de importações em setores
muito sensíveis da economia, a começar pelos derivados de petróleo. Como se
sabe, o Brasil é o nono maior produtor de petróleo do mundo, segundo
levantamento de 2022 do Instituto Brasileiro do Petróleo e Gás, e exporta muito
o produto. Mas, por causa das suas deficiências de refino, é também grande
importador de derivados. Qualquer maior dificuldade à compra de gasolina e
outros derivados desorganiza o segmento, já bastante afetado pelo recente
anúncio de cortes na produção por países da Organização dos Países Exportadores
de Petróleo (Opep) e pelas informações desencontradas sobre a política de
preços da Petrobras. Outra área em que o Brasil é altamente dependente de
matérias-primas e equipamentos é o segmento de saúde: o governo calcula que o
déficit da balança comercial nessa área chega a US$ 20 bilhões ao ano.
Além disso, obstáculos às exportações
brasileiras são sempre fator de preocupação para empresários e governo. As
exportações constituíram-se num fator decisivo de crescimento do Brasil nos
últimos anos, com destaque para o agronegócio e a mineração. Cresce o número de
pequenas e médias empresas que vendem ao exterior, o que ajuda a reduzir
desigualdades regionais.
Nas entidades mundiais, mais especificamente na Organização Mundial do Comércio, é preciso que o Brasil mantenha uma posição de combate ao protecionismo nas suas variadas formas. É compreensível que os governos queiram se preservar de impactos inflacionários que venham de fora, mas existem regras estabelecidas nos fóruns internacionais que precisam ser obedecidas. É fundamental uma presença marcante na defesa dos interesses do País.
Lula se afasta do rumo do não alinhamento
externo
Valor Econômico
O Brasil, que trilhava caminho próprio
independente, está tentado, sob Lula, a escolher o lado do Sul global, que
serve objetivamente aos interesses chineses
Com o primeiro conflito armado entre dois
países em solo europeu desde a Segunda Guerra - a invasão da Ucrânia pela
Rússia -, e o cisma cada vez mais profundo entre as duas maiores economias do
mundo - Estados Unidos e China - a ordem política mundial está mudando e
colocando enormes desafios para todos os países. O Brasil, uma potência média,
sem poder para influir decisivamente nos dois conflitos, construiu posições
temerárias em ambos.
O presidente Lula, antes e durante a viagem
à China, deu declarações improvisadas que se chocam com a gravidade da situação
geopolítica global. Às vésperas de embarcar para o encontro com o presidente Xi
Jinping, Lula e depois de propor um “clube da paz” para mediar uma saída
pacífica para o confronto entre Rússia e Ucrânia, Lula afirmou que o líder
ucraniano Volodymyr Zelenski não poderia ter “tudo o que quer”. Zelenski quer,
em primeiro lugar, que parte de seu território, invadido e arrasado pelas
forças russas, lhe seja devolvido.
Hoje, Lula recebe Sergei Lavrov, ministro
das Relações Exteriores de Vladimir Putin, eterno mandatário da Rússia, que
teve ordem de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional. Celso Amorim,
assessor especial de Lula, encontrou-se reservadamente com Putin, às voltas
agora com a acusação de que envenena na prisão o mais famoso ativista da
oposição, Alexei Navalny, detido por acusações forjadas, típicas de um regime
governado por um ex-agente da KGB.
A proposta de “clube da paz” de Lula foi
recebida com benevolência por Joe Biden e sem qualquer entusiasmo por Xi Jinping
que, em comunicado conjunto da visita, incentivou o presidente brasileiro a
continuar tentando - e não mais que isso. “A China recebeu positivamente os
esforços do Brasil em prol da paz. As partes apelaram a que mais países
desempenhem papel construtivo para a promoção da solução política da crise na
Ucrânia”, registra o comunicado.
Ainda sobre a Ucrânia, em visita oficial a
um país em litígio com os EUA, Lula disse que Washington e os líderes europeus
não têm interesse na paz e fez menções positivas à iniciativa chinesa, que pede
cessação das hostilidades, mas não a retirada das tropas russas. Utilizou a
visita a uma instalação da gigante de tecnologia Huawei para criticar indiretamente
o governo americano. “Queremos dizer ao mundo que não temos preconceito com o
povo chinês. E que ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a
China”, disse Lula. Os EUA alegam um problema de segurança nas relações com as
empresas chinesas, sempre sob alcance da influência tentacular de Pequim, e não
de preconceito contra o povo chinês.
Em cerimônia de posse de Dilma Rousseff no
comando do Novo Banco de Desenvolvimento dos Brics, Lula entrou sem cerimônia
por território alheio a seus conhecimentos. “Toda noite me pergunto por que
todos os países precisam fazer seu comércio lastreado no dólar”, afirmou. É
possível pregar com bons argumentos o uso de outras moedas para o comércio
internacional, até mesmo que Brasil e China façam isso, mas não é possível
ignorar que a moeda chinesa não é usada em trocas amplas internacionais porque
a China é uma ditadura, com mercado fechado, que controla o câmbio e o leva
para aonde ditar seus interesses econômicos. Por tudo isso, não é uma moeda
confiável.
O objetivo claro de Lula é o de “ junto com
a China (...) equilibrar a geopolítica mundial”. Os Brics são parte dessa
tentativa, mas o bloco não é mais o mesmo de 2008 quando foi criado. A China
pretende usá-lo de ariete na disputa com os EUA e quer ampliá-lo a mais países.
China e Rússia tentam atrair o Brasil para o mesmo caminho, tornando-o um bloco
ideológico com dinheiro suficiente para comprar lealdades.
Alinhar ideologicamente o Brasil aos
interesses chineses, como faria o PT sem piscar os olhos, traria mais prejuízos
que ganhos ao país. Em termos econômicos, seria quase a mesma coisa. O Brasil
tem com a China relação semi-colonial: vende bens primários e compra bens
industrializados. Europa e EUA são seu segundo e terceiro maiores parceiros
comerciais e formam aliança instável contra Pequim. Nessa perigosa nova ordem
em construção, a China sabe exatamente o que quer. O Brasil, que trilhava
caminho próprio independente, está tentado, sob Lula, a escolher o lado do Sul
global, que serve objetivamente aos interesses chineses.
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