Valor Econômico
O caminho é construir um modelo baseado em
bons diagnósticos, com visão sistêmica e contextual dos problemas e,
geralmente, com alterações incrementais das instituições
O Senado federal discute agora uma proposta
de fim da reeleição para os cargos do Executivo e de junção de todas as
eleições - municipal, estadual e federal - num só pleito. Se a base para
avaliar tais medidas for o senso comum, é preciso aprovar essas leis. Mas, se
as evidências científicas forem a bússola da decisão, essas reformas são
completamente equivocadas. Todo esse debate, no entanto, tem uma utilidade:
mostrar que o Congresso Nacional precisa ouvir mais os especialistas e a
sociedade antes de fazer grandes alterações legislativas, pois o que parece ser
uma solução mágica pode ser apenas ilusionismo.
O novo projeto de reforma política, centrado
na extinção da reeleição, não é o único caso daquilo que chamo de reformismo
ilusionista. A proposta de reforma administrativa em discussão na Câmara, que
promete aumentar a eficiência e cortar gastos, sofre do mesmo mal. Outros
projetos recentes, como o que pretende acabar com a “saidinha” dos presos,
também é outro caso em que a legítima reação contra alguns bandidos que fogem e
cometem novos crimes produz magia reversa: a decisão vai aumentar a sensação de
inferno que predomina nas penitenciárias, favorecendo o poderio das facções
criminosas.
O reformismo ilusionista contém quatro características básicas. Em primeiro lugar, busca soluções que aparentam ter um impacto amplo e imediato, quase num passe de mágica. Nesse modelo, o legislador acredita que acabar com a reeleição vai alterar, já no período subsequente, a qualidade da ação dos governantes, que não pensarão mais em eleições e se concentrarão em governar. O ilusionismo não permite dúvidas sobre o dia seguinte, nem um caminho mais gradual de mudança. Sua força política está em ser simples, e sua debilidade encontra-se no simplismo de sua proposição.
Uma segunda característica é o predomínio de
uma visão míope, concentrada num aspecto da estrutura institucional. Juntar
todas as eleições porque o processo político vai se tornar mais barato é se
esquecer que o pleito municipal precisa ser valorizado num país enorme que
descentralizou o poder e as políticas públicas. Acabar com a estabilidade dos
funcionários públicos, incluindo a de professores e médicos, é ignorar que,
sobretudo no plano subnacional, poderiam ser mandados embora não
necessariamente os “piores”, mas há boas chances de os demitidos serem os
“melhores”, porque eles poderiam ser um obstáculo republicano ao projeto de
poder do governante. A administração pública não é separada da forma como a
política funciona num país, e não levar isso em conta é um grande erro.
Ancorar-se mais no senso comum ou em chavões
do que em evidências é um terceiro aspecto do reformismo ilusionista. Qualquer
mudança legislativa de grande alcance tem de se ancorar em estudos e debates
com múltiplos especialistas. Mais importante do que as boas intenções é ter
clareza sobre as possíveis consequências da mudança proposta. Em geral,
contudo, o modelo ilusionista orienta-se pela lógica das soluções em busca de
problemas, isto é, o prognóstico vem antes do diagnóstico. Essa é a sua parte
mais complicada. Muitas reformas pelo mundo deram errado porque os países e
reformistas moveram-se por ideias produzidas em contextos muito diferentes e
tentaram simplesmente transportar tais medidas sem a devida contextualização.
Obviamente que as evidências científicas não
são completamente neutras. Além disso, muitas vezes o conhecimento científico
sabe explicar a razão de algo ter dado errado ou sabe o que não deve ser feito,
mas não tem certeza sobre o caminho a ser adotado ou sobre como mudar com
precisão. Daí que reformas ancoradas em evidências supõem escolhas políticas,
até porque geralmente há um leque de opções justificáveis (com seus prós e
contras), e não a solução perfeita. A parcimônia, o diálogo e a transparência do
processo devem ser os guias de boas reformas institucionais.
E aqui entra o quarto elemento do reformismo
ilusionista que tomou conta do Congresso Nacional: as reformas propostas
escondem os interesses que estão sendo protegidos. Em outras palavras, há uma
escolha política desses temas e de suas soluções. Numa democracia, não há nada
de errado em orientar politicamente as reformas. O problema está em acreditar
no valor de face das propostas de alteração legal. É preciso se perguntar quem
são os beneficiados, os prejudicados e os atores ocultos. Só assim é possível
fazer uma análise do sentido das reformas e de seus prováveis efeitos.
A reforma administrativa esconde que o lado
menos “accountable” da administração pública brasileira, em termos de gastos
públicos e responsabilização perante o eleitor, são a elite do Sistema de
Justiça e os militares. Esses são salvos do reformismo. Alguns dos que podem
perder a estabilidade são os que têm a pior situação funcional, em termos de
salários e carreiras, e, inversamente, são os que mais afetam diretamente a
vida dos cidadãos e que mais são cobrados por eles no dia a dia. Se hoje a
profissão docente sofre muito com sua baixa profissionalização, já que metade
dos professores estaduais são temporários, com esse tipo de reformismo
enterraremos de vez a possibilidade de educarmos melhor os estudantes mais
pobres do país.
Trata-se, ademais, de uma reforma
administrativa pensada basicamente para a lógica política e burocrática do
plano federal, quando hoje a maior parte do Estado brasileiro é descentralizado
na prestação dos serviços públicos básicos. Se aprovada a proposta hoje em
discussão, serão fragilizadas as capacidades estatais dos municípios e o
clientelismo ganhará força, numa era em que o emendismo parlamentar, com pix
direto para os amigos locais sem o devido controle institucional, tornou-se um
elemento central do sistema. Precisa desenhar qual será o efeito e quem serão
os maiores beneficiados com essa reforma?
No caso da nova reforma política, não há
nenhuma evidência científica de que ficar sem reeleição é o melhor caminho para
as eleições majoritárias. Antes da emenda aprovada no governo Fernando
Henrique, os governantes em todos os níveis da Federação já gastavam a maior
parte do seu tempo com a definição de seu sucessor. Pior: muitas vezes
escolhiam prepostos que ficariam um tempo esquentando a cadeira para o
posterior retorno do padrinho político. Maluf quebrou a Prefeitura de São Paulo
para eleger Celso Pitta, o pior prefeito da história da cidade; Quércia quebrou
o governo estadual de São Paulo para eleger Fleury Filho, o pior governador da
história paulista.
Juntar todas as eleições federativas num ano
só é enfraquecer a governança municipal e, por consequência, a cidadania, que
começa no exercício citadino de participação e controle dos representantes
locais. Se hoje os eleitores já têm dificuldades de prestar atenção no pleito a
governador e, principalmente, das assembleias legislativas por conta da
coincidência com a disputa nacional, imagina se alguém vai lembrar no voto a
vereador quando estiver em jogo a Presidência da República. Tal reformismo, em
resumo, tende a debilitar os municípios, que constituem o primeiro degrau da
democracia brasileira.
Em vez de propor reformas mágicas e míopes,
orientadas pela lógica do senso comum e das soluções em busca de problemas, o
caminho é construir um modelo baseado em bons diagnósticos, com visão sistêmica
e contextual dos problemas e, geralmente, com alterações incrementais das
instituições. Seguindo essa linha, no caso da reforma administrativa o caminho
é claramente distinto do proposto na Câmara por meio de uma PEC. A maior parte
das alterações necessárias são no campo infraconstitucional, em questões como concursos,
mudanças na amplitude das carreiras federais, melhoria no processo de seleção
de cargos comissionados e mesmo a regulamentação da demissão por desempenho,
todas referentes ao aperfeiçoamento da gestão de pessoas com efeitos
incrementais, e não imediatos, sobre a administração pública.
Se for para fazer uma reforma institucional
de âmbito constitucional e com impactos fiscais mais amplos, o objeto da
reforma é outro, relacionado ao teto remuneratório do setor público. Esse é o
projeto do qual ninguém quer falar. Tão importante quanto isso é a constatação,
por vários estudos, de que a burocracia subnacional, especialmente a municipal,
é frágil. Isso traz efeitos perversos para as políticas públicas essenciais à
população mais pobre do país. Logo, é preciso pensar em reformas que mudem essa
situação, algo que não está em discussão no atual reformismo ilusionista.
No caso das medidas propostas para melhorar o
sistema político, o importante é criar mecanismos que reduzam a possibilidade
de os governantes, em todos os níveis, usarem a máquina pública em seu favor na
época da eleição. A LRF já melhorou muito esse quadro, mas outras medidas podem
ser tomadas. Além disso, a transparência governamental precisa ser
constantemente aperfeiçoada, assim como o papel dos órgãos de controle. E se o
objetivo for cortar custos, basta reduzir o tamanho dos Fundos Partidário e Eleitoral.
Afinal, ampliar o tamanho de mandatos e reduzir a importância da política
municipal, como se propõe no projeto do Senado, não é a forma mais republicana
de melhorar a democracia brasileira.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
2 comentários:
■SIM !
=》Se é por qualidade que têm que ser feitas reformas, então a condução e as reformas propriamente ditas têm que ter, elas, qualidade, para que possam fazer o efeito que se quer.
=》Mas em uma Câmara de Deputados que para presidir a Comissão de Educação de um país que está com um das políticas de educação mais fracassadas do mundo acaba de eleger um deputadinho imbecil e tresloucado, Nikolas Ferreira, e para presidir a Comissão de Constituição e Justiça acaba de eleger a deputada que estimula a prática de crimes, Caroline de Toni, não dá para esperar qualidade nenhuma com esta Câmara e é melhor deixar o desastre em que está a burocracia e não fazer reforma nenhuma.
■Mas também, o que se pode esperar de uma política que está dividida entre Lula e Bolsonaro, dois nomes tão despreparados para liderar e governar que dificilmente um país poderia contar com candidatos piores e que, no entanto, seus apoiadores os veem como a melhor qualidade possível dentro dos nomes que se apresentam?
Texto excepcional! É difícil uma coluna do Fernando que não seja proveitosa. Escreve com cuidado e boa argumentação.
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