terça-feira, 8 de outubro de 2024

Pedro Doria - O dilema Marçal

O Globo

Pablo Marçal criou, em dois meses de campanha, uma penca de problemas novos para a Justiça Eleitoral. Agora temos dois anos pela frente para estudar o que ele liderou e impedir que as armadilhas que criou peguem a todos de surpresa quando a disputa presidencial chegar. Mas como é difícil se preparar para eleições no tempo digital! No TSE, há seis meses, a grande preocupação era com o surgimento da inteligência artificial generativa e os perigos que a tecnologia poderia apresentar na forma de desinformação. Fazia todo o sentido. Só que a principal ameaça à integridade eleitoral não veio por essa banda. Veio da cultura do marketing digital.

Quem trabalha com venda de produtos digitais costumava já classificar Marçal como melhor do ramo no Brasil desde antes de sua candidatura. Ele sempre fez muito dinheiro vendendo cursos on-line, vendendo e-books, vendendo horas passadas com ele. Vendendo toda sorte de coisas, quase sempre digitais. É um bom vendedor e especialista naquilo que chamam, nesse mundo, de “fórmula do lançamento”. É uma técnica para convencer clientes potenciais a comprar pelas redes sociais.

Em geral, os muitos cursos caríssimos sobre como lançar produtos digitais são cheios de slogans, muita purpurina verbal e verve, mas dá para resumir a ideia num pacote de poucos passos. Primeiro se constroem um ou mais perfis de redes sociais com muitos seguidores. Dá trabalho, até porque seguidor falso não compra nada. E o perfil não é qualquer perfil. Já precisa transmitir que seu dono é autoridade em algum tema qualquer. A partir daí, esse perfil precisa gerar atenção. Muita atenção concentrada num prazo determinado. É o instante do lançamento do produto.

A atenção se conquista primeiro com viralização orgânica. O vídeo, a foto, devem chegar a muita gente empurrados pelo algoritmo. Por isso seguidores colhidos ao longo do tempo e convencidos da autoridade daquele perfil são importantes. A viralização orgânica permite que o custo de impulsionamento caia. Todas as redes sociais permitem que se pague para chegar a um público amplo com interesse num determinado assunto. Mas o preço varia. Pode ser alto, se ninguém estiver interessado na mensagem. E despenca se muitos quiserem aquele conteúdo. A estratégia culmina com um período curto de lançamento. O produto não deve ficar à venda para sempre. É preciso criar escassez artificial e dar, ao público, uma sensação de urgência. Ou compra agora, ou nunca mais.

Pablo Marçal transformou a eleição numa venda de produto digital. Trabalhou o tempo todo para chamar a atenção para si e para promover viralização orgânica. Mentiu, provocou brigas, fez as acusações mais absurdas e, no último momento, falsificou documentos. Fez do processo eleitoral um circo. Não é metáfora. Transformou mesmo a eleição da maior cidade do país num circo daqueles antigos, onde as atrações são doenças, síndromes raras, o mais triste da experiência humana.

Numa eleição, o resultado concreto de um candidato assim é matar o debate público. Ele sequestra a atenção, e as propostas dos outros desaparecem. O caráter de quem concorre à eleição, o histórico, tudo passa sem ser discutido. A tática de Marçal é ilusionista. Sim, ele chama a atenção. Conhece os truques todos para controlar o meio digital. Pode ser boa prática de venda, mas, no mercado de ideias, na dinâmica da democracia, o importante, observar a dinâmica entre os candidatos todos, se perde.

Algumas ações de Marçal são obviamente ilegais. Publicar um laudo médico falso é o tipo de coisa que leva à inelegibilidade. Ele, em seu Instagram, já organizava sua candidatura à Presidência em 2026 nesta segunda-feira. Circula em Brasília que dificilmente conseguirá, pois não passará do TSE. Só que outras de suas ações são mais dúbias. Atiçar um candidato esquentado a lhe agredir, isso é crime? Promover concursos de cortes, como se controla? E levantar suspeitas falsas sobre outros candidatos com gestos e reticências, sem jamais fazer uma acusação de cara?

Como se controla um candidato disposto a impedir que a democracia flua com amplo espaço para todos apresentarem suas ideias? É um problema para o TSE, para o Congresso e para nós, jornalistas. Temos dois anos.

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