domingo, 28 de setembro de 2025

A artimanha de olhar sem ver. Por Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

A tensão entre o que salta aos olhos e a impotência de não confiar no próprio testemunho é o que alerta a consciência para a enormidade da ameaça contra o Estado democrático de Direito

Numa foto de sonda espacial do solo de Marte destaca-se uma rocha com traços semelhantes a nariz e boca, o que leva o observador a reconhecer o desenho de um rosto humano, quando se trata da ação aleatória da natureza. Esse tipo de ilusão, muito frequente, deve-se ao fenômeno mental conhecido como "pareidolia", tendência da percepção de se guiar por padrões já estabelecidos. Acredita-se, assim, ver coisas que não estão de fato presentes.

Pode acontecer o contrário: não ver o que está à frente. A inflação cai, o emprego sobe, mas a percepção comum diz que está tudo errado. Às vezes, o fenômeno é alucinatório. De modo geral, é uma forma negativa da pareidolia, extensiva aos fatos. No histórico julgamento de Nuremberg, Hermann Göring, segundo de Hitler no poder de Estado, sustentava nunca ter matado ninguém nem sabido de atrocidades. Os juízes condenaram-no à evidência da forca, que ele evitou com uma cápsula de cianeto na prisão.

Já entre nós entra para a história uma negação bizarra. No julgamento da trama golpista, um magistrado do STF sustentou durante 13 horas de fala que não enxergava evidência de articulação pelo clã ex-presidencial de um golpe de Estado. Ponto cego era justamente o excesso de provas: movimentações, delações, rascunhos de estado de sítio, até mesmo um plano para assassinar o presidente da República e seu vice. A um colega do STF, nada menos que a forca. Ver demais seria não ver, talvez apenas ouvir: um "choro de perdedores".

É a pareidolia do juiz. Nesse caso, porém, fenômeno de grupo, compartilhado por agronegócio, empresários, financistas, congressistas, com percepção toldada por circuitos blindados de interesses. Traduzidos em desinformação, resultam numa cegueira extensiva à população em quase um terço, composto de gente que culpa o sistema por seus fracassos, de hordas de idosos jogados dos bingos para grupos de zap, de ignorantes políticos. Todos expostos à enganação pastoral e à cacofonia do partido digital golpista. Burla-se até o nariz: uma visão olfativa detectaria o esgoto transbordado.

Mas há algo de auspicioso nessa injunção de cegamento aos fatos. Três quartos de século atrás, Roland Barthes associava o efeito artístico das comédias de Chaplin ao teatro de fantoches, cujo público se divertia com o fato de a mocinha não perceber as evidentes maquinações do vilão (em "Mitologias", escrito pelo mestre francês). Nos filmes, desapercebido do perigo, Carlitos com lírica ingenuidade alargava a percepção do espectador: ver alguém não ver é ver duplamente. Assim como os espectadores do julgamento da trama golpista: viram o juiz não ver.

Chapliniana, auspiciosa, a tensão entre o que salta aos olhos e a impotência de não confiar no próprio testemunho é o que alerta a consciência para a enormidade da ameaça contra o Estado democrático de Direito.

 

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