O Estado de S. Paulo
Mas os fatos, como comprovam também as
tarifas comerciais, podem ser perigosamente mais complicados
Atal química entre as pessoas, citada pelos presidentes Lula e Trump depois de seu encontro na ONU, pode ser importante para indivíduos. Mas o relacionamento entre países parece mais complicado, especialmente quando se trata da famigerada ordem mundial, com tantos interesses – políticos, econômicos e até religiosos – distintos e às vezes conflitantes. Aí se torna mais evidente uma diferença entre o governante americano e o brasileiro, e também entre o americano e dezenas de autoridades de todos os continentes.
Apesar de rivalidades, competições e
conflitos violentos, a noção de uma ordem global pacífica e até cooperativa é
um valor cultuado na maior parte do mundo, mesmo com variados graus de
sinceridade e hipocrisia. O presidente Lula tem-se apresentado, em palcos
internacionais, como adepto desse culto, embora errando, às vezes, na
identificação de agredido e agressor. Na prática, tem procurado atuar como
conciliador, embora sem se apresentar publicamente, pelo menos até agora, como
candidato ao Prêmio Nobel da Paz, um troféu abertamente pretendido – e quase
reclamado – pelo presidente americano.
A pretensão de Trump parece um tanto
estranha, quando se pensa na paz como um desejável componente da ordem mundial.
Essa noção de ordem tem sido ignorada, de forma persistente, pelo presidente
dos Estados Unidos. Além de sustentar fielmente o compromisso de abastecer
Israel com armamentos variados, ele já interveio militarmente na Síria. Além
disso, destruiu barcos venezuelanos e matou seus tripulantes, sem provar, até
hoje, a alegação de que transportavam drogas destinadas ao território dos
Estados Unidos.
Seu desprezo por instituições internacionais
tem sido mostrado, com frequência, por meio de intervenções no comércio exterior,
com imposição de tarifas aberrantes e discriminações de parceiros. Mas foi
explicitado também, de forma inegável, quando anunciou a intenção de abandonar,
até o próximo ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma entidade com
atuação respeitável no combate a pandemias e no apoio a países pobres. Essa
decisão talvez seja abandonada se outros governos, talvez do mundo rico, se
dispuserem a aumentar suas contribuições, diminuindo o custo para o Tesouro
americano.
É difícil dizer se a ameaça será cumprida,
mas o episódio demonstra, mais uma vez, o estilo de Trump, um político mais
propenso a se impor do que a negociar e, além disso, pouco inclinado a
valorizar entidades e programas internacionais. O desprezo manifestado pelo
presidente americano parece, no entanto, abranger mais do que uma entidade e
alguns programas. Ele poderia ter iniciado pressões e negociações para induzir
governos europeus, por exemplo, a destinar mais dinheiro à OMS, assim como os
pressionou a gastar mais com a própria segurança. Mas preferiu pôr em risco a
organização e seu trabalho a favor dos países mais necessitados.
Levado adiante, esse comportamento poderá
afetar trabalhos de outras entidades, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional (FMI). A atuação do Banco Mundial nas áreas em desenvolvimento, e
especialmente nos países pobres, é razoavelmente conhecida e tem sido apoiada
pelo governo americano. Muito menos conhecido é o trabalho do FMI a favor da
modernização administrativa de muitos desses países. Esse trabalho, de enorme
importância em dezenas de nações, tem sido financiado, de fato, com recursos
entregues de graça, detalhe pouco divulgado.
O Banco Mundial, o FMI, a OMC e outras
entidades multilaterais sobreviveram sem perdas ao primeiro mandato presidencial
de Donald Trump, mas ele já falou mal de seus assessores daqueles tempos. Não
se sabe, ainda, como ele se comportará, desta vez, em relação às principais
instituições econômicas internacionais, se a sua assessoria, agora, for mais
alinhada às suas convicções e às suas intolerâncias. Esse alinhamento é
ostensivo no caso de dois secretários de primeira linha, o de Relações
Exteriores, Marco Rubio, e o do Tesouro, Scott Bessent.
Esse detalhe pode ser muito mais importante
do que talvez pareça inicialmente. Os Estados Unidos são grandes financiadores
e sócios muito poderosos das grandes instituições econômicas e financeiras
internacionais. Com participações agrupadas, países da Europa Ocidental também
controlam uma fração respeitável do capital dessas entidades, assim como a
China, de forma isolada. Poderão, se quiserem, resistir a pressões do governo
americano, se Trump e seus auxiliares tentarem mexer perigosamente no
funcionamento dessas associações. Se for necessária, a resistência mais forte
virá, provavelmente, do governo chinês, controlador da segunda maior parcela
individual de recursos dessas instituições.
A química pode ser, de fato, relevante para o relacionamento entre pessoas e governos. Como se verifica no dia a dia, esse fato dificilmente seria negado pela singela e respeitável sabedoria do conselheiro Acácio. Mas os fatos, como comprovam também as tarifas comerciais, podem ser perigosamente mais complicados.
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