domingo, 28 de setembro de 2025

A química entre países pode ser mais complexa. Por Rolf Kuntz

O Estado de S. Paulo

Mas os fatos, como comprovam também as tarifas comerciais, podem ser perigosamente mais complicados

Atal química entre as pessoas, citada pelos presidentes Lula e Trump depois de seu encontro na ONU, pode ser importante para indivíduos. Mas o relacionamento entre países parece mais complicado, especialmente quando se trata da famigerada ordem mundial, com tantos interesses – políticos, econômicos e até religiosos – distintos e às vezes conflitantes. Aí se torna mais evidente uma diferença entre o governante americano e o brasileiro, e também entre o americano e dezenas de autoridades de todos os continentes.

Apesar de rivalidades, competições e conflitos violentos, a noção de uma ordem global pacífica e até cooperativa é um valor cultuado na maior parte do mundo, mesmo com variados graus de sinceridade e hipocrisia. O presidente Lula tem-se apresentado, em palcos internacionais, como adepto desse culto, embora errando, às vezes, na identificação de agredido e agressor. Na prática, tem procurado atuar como conciliador, embora sem se apresentar publicamente, pelo menos até agora, como candidato ao Prêmio Nobel da Paz, um troféu abertamente pretendido – e quase reclamado – pelo presidente americano.

A pretensão de Trump parece um tanto estranha, quando se pensa na paz como um desejável componente da ordem mundial. Essa noção de ordem tem sido ignorada, de forma persistente, pelo presidente dos Estados Unidos. Além de sustentar fielmente o compromisso de abastecer Israel com armamentos variados, ele já interveio militarmente na Síria. Além disso, destruiu barcos venezuelanos e matou seus tripulantes, sem provar, até hoje, a alegação de que transportavam drogas destinadas ao território dos Estados Unidos.

Seu desprezo por instituições internacionais tem sido mostrado, com frequência, por meio de intervenções no comércio exterior, com imposição de tarifas aberrantes e discriminações de parceiros. Mas foi explicitado também, de forma inegável, quando anunciou a intenção de abandonar, até o próximo ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma entidade com atuação respeitável no combate a pandemias e no apoio a países pobres. Essa decisão talvez seja abandonada se outros governos, talvez do mundo rico, se dispuserem a aumentar suas contribuições, diminuindo o custo para o Tesouro americano.

É difícil dizer se a ameaça será cumprida, mas o episódio demonstra, mais uma vez, o estilo de Trump, um político mais propenso a se impor do que a negociar e, além disso, pouco inclinado a valorizar entidades e programas internacionais. O desprezo manifestado pelo presidente americano parece, no entanto, abranger mais do que uma entidade e alguns programas. Ele poderia ter iniciado pressões e negociações para induzir governos europeus, por exemplo, a destinar mais dinheiro à OMS, assim como os pressionou a gastar mais com a própria segurança. Mas preferiu pôr em risco a organização e seu trabalho a favor dos países mais necessitados.

Levado adiante, esse comportamento poderá afetar trabalhos de outras entidades, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). A atuação do Banco Mundial nas áreas em desenvolvimento, e especialmente nos países pobres, é razoavelmente conhecida e tem sido apoiada pelo governo americano. Muito menos conhecido é o trabalho do FMI a favor da modernização administrativa de muitos desses países. Esse trabalho, de enorme importância em dezenas de nações, tem sido financiado, de fato, com recursos entregues de graça, detalhe pouco divulgado.

O Banco Mundial, o FMI, a OMC e outras entidades multilaterais sobreviveram sem perdas ao primeiro mandato presidencial de Donald Trump, mas ele já falou mal de seus assessores daqueles tempos. Não se sabe, ainda, como ele se comportará, desta vez, em relação às principais instituições econômicas internacionais, se a sua assessoria, agora, for mais alinhada às suas convicções e às suas intolerâncias. Esse alinhamento é ostensivo no caso de dois secretários de primeira linha, o de Relações Exteriores, Marco Rubio, e o do Tesouro, Scott Bessent.

Esse detalhe pode ser muito mais importante do que talvez pareça inicialmente. Os Estados Unidos são grandes financiadores e sócios muito poderosos das grandes instituições econômicas e financeiras internacionais. Com participações agrupadas, países da Europa Ocidental também controlam uma fração respeitável do capital dessas entidades, assim como a China, de forma isolada. Poderão, se quiserem, resistir a pressões do governo americano, se Trump e seus auxiliares tentarem mexer perigosamente no funcionamento dessas associações. Se for necessária, a resistência mais forte virá, provavelmente, do governo chinês, controlador da segunda maior parcela individual de recursos dessas instituições.

A química pode ser, de fato, relevante para o relacionamento entre pessoas e governos. Como se verifica no dia a dia, esse fato dificilmente seria negado pela singela e respeitável sabedoria do conselheiro Acácio. Mas os fatos, como comprovam também as tarifas comerciais, podem ser perigosamente mais complicados. 

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