O Estado de S. Paulo
A superação do ideário ‘nacional-popular’, bem como do anti-imperialismo unilateral, habilita-nos a uma visão atualizada do cosmopolitismo
Nenhuma dúvida: o pessimismo da razão autoriza um olhar melancólico sobre o mundo em que vivemos. A inteligência artificial e demais frentes do avanço tecnológico convivem com programas políticos regressivos, e os protagonistas desses dois âmbitos, a tecnologia e a política, se misturam de forma incompreensível e cada vez mais perigosa. Diz-nos a razão, esta dama de temperamento cético, que uns e outros, reforçando-se mutuamente, preparam-nos um ambiente de acordo com as piores projeções das antiutopias, nas quais o velho homem e a sociedade de sempre surgem negativamente renovados.
De fato, a regressão não só está inscrita em
programas, como tem a seu dispor atores decididos a impulsioná-la acima das
normas legais. Consideremos a reação trumpiana ao declínio relativo da
superpotência norte-americana e os meios ideológicos que mobiliza para
revertê-lo. Vemos o presidente Trump clamar, por exemplo, contra a opressão nas
“nações cativas”, como se o ateísmo de Estado ou a perseguição religiosa
vigorassem em modernas nações democráticas e exigissem condenação ou
interferência. Ou ainda denunciar genocídios inexistentes, como contra os
africâneres, calando dolosamente sobre Gaza e Cisjordânia, e tergiversando
sobre a Ucrânia.
Nas relações entre os Estados Unidos e as
Américas, caminhamos quase em marcha forçada – só que para trás. Difícil
encontrar em outra parte, como encontramos já no discurso de posse
presidencial, a ideia de expandir o território, como se regiões ou países
pudessem ser anexados ou cancelados ao bel-prazer. Até observadores menos
atentos notaram que, associada à exaltação do “destino manifesto”, ressurge a
intenção de restaurar a política de grande potência, dona da esfera de
influência respectiva. Boquiabertos, assistimos à volta de um sucedâneo malfeito
da Doutrina Monroe, segundo o qual – infere-se – a presença chinesa na América
Latina pode ser afastada ao modo das tentativas de recolonização europeia no
século 19.
Na verdade, especialmente neste seu segundo
mandato, o presidente Trump indica como poucos o espírito do tempo. Cada nação,
não importando o tamanho do seu território ou sua tradição política e cultural,
deve ser “grande de novo”. Os “soberanismos” se disseminaram, para usar um
termo nascido no outro lado do Atlântico. Lá, em vez do sonho unitário ou da
perspectiva de associação política e livre circulação de bens e pessoas, o
encerramento nos próprios muros, inexpugnáveis como fortalezas medievais.
Também deste nosso lado do oceano, a política
trumpista, ao reciclar velharias e oscilar ciclicamente entre isolamento e
predação, pode ter consequências menos positivas para as forças progressistas.
Como se sabe, essas últimas, por causa das circunstâncias do capitalismo
brasileiro, tiveram um passado mais nacionalista (soberanista, em última
análise) do que democrático. As palavras de ordem “anti-imperialistas”
conheceram ampla circulação, mesmo quando o “capitalismo dependente e
associado” já se instalara como realidade inevitável e indicava o País que de
fato existia.
Nação e antinação continuaram a ser por muito
tempo os termos em que se concebia o drama político, com consequências
nefastas. Antes de 1964, por antinação se entendiam classes e camadas
“entreguistas”, associadas ao imperialismo. Depois de 1964, esse figurino
passou a ser enfiado nos opositores da ordem “revolucionária”, que seriam
muitas vezes alvo de cerco, tortura e morte. Só aos poucos, e não sem
persistentes dificuldades, tais opositores se unificaram em torno da então
chamada questão democrática, vista como condição sem a qual, daí por diante,
não se poderia definir internamente a nação nem entender sua posição no mundo.
Com esse entendimento, corporificado na Carta
de 1988, tornamo-nos politicamente adultos. Não há mais correntes banidas da
competição eleitoral e da disputa de ideias, desde que pacíficas e legalistas –
o que, evidentemente, não é o caso dos que refutam as urnas e conspiram no breu
das tocas. Os diferentes governos orientam ecumenicamente as relações externas,
e é suposto que, ao fazê-lo, não queiram trocar uma relação de subalternidade
por outra nem tenham uma concepção de imperialismo restrita ao poderio norte-americano.
O nexo nacional-internacional afirma-se, assim, em toda a sua intensidade.
Somos uma das maiores democracias existentes, assumimos suas imperfeições
(ainda) gritantes e, coerentemente, não escutamos o canto de sereia das
autocracias – sejam disfuncionais ou “eficientes”.
A superação do ideário “nacional-popular” dos
anos 1950 ou 1960, bem como do anti-imperialismo unilateral que era sua marca
registrada, habilita-nos a uma visão atualizada do cosmopolitismo. O ponto de
partida é o Estado-nação, nele é que temos pés bem fincados e tarefas imensas a
resolver. O horizonte, porém, é a inserção ativa no processo de unificação de
um mundo hoje tremendamente fragmentado, a partir de alianças e aproximações,
antes de tudo, com quem compartilha o apreço pelo método democrático e a
justiça social.
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