domingo, 28 de setembro de 2025

Nação e imperialismo. Por Luiz Sérgio Henriques

O Estado de S. Paulo

A superação do ideário ‘nacional-popular’, bem como do anti-imperialismo unilateral, habilita-nos a uma visão atualizada do cosmopolitismo

Nenhuma dúvida: o pessimismo da razão autoriza um olhar melancólico sobre o mundo em que vivemos. A inteligência artificial e demais frentes do avanço tecnológico convivem com programas políticos regressivos, e os protagonistas desses dois âmbitos, a tecnologia e a política, se misturam de forma incompreensível e cada vez mais perigosa. Diz-nos a razão, esta dama de temperamento cético, que uns e outros, reforçando-se mutuamente, preparam-nos um ambiente de acordo com as piores projeções das antiutopias, nas quais o velho homem e a sociedade de sempre surgem negativamente renovados.

De fato, a regressão não só está inscrita em programas, como tem a seu dispor atores decididos a impulsioná-la acima das normas legais. Consideremos a reação trumpiana ao declínio relativo da superpotência norte-americana e os meios ideológicos que mobiliza para revertê-lo. Vemos o presidente Trump clamar, por exemplo, contra a opressão nas “nações cativas”, como se o ateísmo de Estado ou a perseguição religiosa vigorassem em modernas nações democráticas e exigissem condenação ou interferência. Ou ainda denunciar genocídios inexistentes, como contra os africâneres, calando dolosamente sobre Gaza e Cisjordânia, e tergiversando sobre a Ucrânia.

Nas relações entre os Estados Unidos e as Américas, caminhamos quase em marcha forçada – só que para trás. Difícil encontrar em outra parte, como encontramos já no discurso de posse presidencial, a ideia de expandir o território, como se regiões ou países pudessem ser anexados ou cancelados ao bel-prazer. Até observadores menos atentos notaram que, associada à exaltação do “destino manifesto”, ressurge a intenção de restaurar a política de grande potência, dona da esfera de influência respectiva. Boquiabertos, assistimos à volta de um sucedâneo malfeito da Doutrina Monroe, segundo o qual – infere-se – a presença chinesa na América Latina pode ser afastada ao modo das tentativas de recolonização europeia no século 19.

Na verdade, especialmente neste seu segundo mandato, o presidente Trump indica como poucos o espírito do tempo. Cada nação, não importando o tamanho do seu território ou sua tradição política e cultural, deve ser “grande de novo”. Os “soberanismos” se disseminaram, para usar um termo nascido no outro lado do Atlântico. Lá, em vez do sonho unitário ou da perspectiva de associação política e livre circulação de bens e pessoas, o encerramento nos próprios muros, inexpugnáveis como fortalezas medievais.

Também deste nosso lado do oceano, a política trumpista, ao reciclar velharias e oscilar ciclicamente entre isolamento e predação, pode ter consequências menos positivas para as forças progressistas. Como se sabe, essas últimas, por causa das circunstâncias do capitalismo brasileiro, tiveram um passado mais nacionalista (soberanista, em última análise) do que democrático. As palavras de ordem “anti-imperialistas” conheceram ampla circulação, mesmo quando o “capitalismo dependente e associado” já se instalara como realidade inevitável e indicava o País que de fato existia.

Nação e antinação continuaram a ser por muito tempo os termos em que se concebia o drama político, com consequências nefastas. Antes de 1964, por antinação se entendiam classes e camadas “entreguistas”, associadas ao imperialismo. Depois de 1964, esse figurino passou a ser enfiado nos opositores da ordem “revolucionária”, que seriam muitas vezes alvo de cerco, tortura e morte. Só aos poucos, e não sem persistentes dificuldades, tais opositores se unificaram em torno da então chamada questão democrática, vista como condição sem a qual, daí por diante, não se poderia definir internamente a nação nem entender sua posição no mundo.

Com esse entendimento, corporificado na Carta de 1988, tornamo-nos politicamente adultos. Não há mais correntes banidas da competição eleitoral e da disputa de ideias, desde que pacíficas e legalistas – o que, evidentemente, não é o caso dos que refutam as urnas e conspiram no breu das tocas. Os diferentes governos orientam ecumenicamente as relações externas, e é suposto que, ao fazê-lo, não queiram trocar uma relação de subalternidade por outra nem tenham uma concepção de imperialismo restrita ao poderio norte-americano. O nexo nacional-internacional afirma-se, assim, em toda a sua intensidade. Somos uma das maiores democracias existentes, assumimos suas imperfeições (ainda) gritantes e, coerentemente, não escutamos o canto de sereia das autocracias – sejam disfuncionais ou “eficientes”.

A superação do ideário “nacional-popular” dos anos 1950 ou 1960, bem como do anti-imperialismo unilateral que era sua marca registrada, habilita-nos a uma visão atualizada do cosmopolitismo. O ponto de partida é o Estado-nação, nele é que temos pés bem fincados e tarefas imensas a resolver. O horizonte, porém, é a inserção ativa no processo de unificação de um mundo hoje tremendamente fragmentado, a partir de alianças e aproximações, antes de tudo, com quem compartilha o apreço pelo método democrático e a justiça social.

 

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