O Globo
Era previsível que o julgamento de Jair
Bolsonaro e dos réus do “núcleo crucial” da trama golpista no
Supremo Tribunal Federal (STF)
provocasse reação da oposição no Congresso, em especial da extrema direita,
pela anistia aos presos do 8 de Janeiro. Pautar a votação sobre o tema era a
condição dos bolsonaristas para encerrar a invasão do plenário da Câmara dos
Deputados, que o presidente Hugo Motta (Republicanos-PB)
foi incapaz de debelar sozinho.
Todo o tumulto que vem se fazendo em Brasília em
torno do tema nestes dias, portanto, já estava na conta. Isso não significa que
se aprovará algum perdão aos golpistas.
O que não estava na conta era o arreganho do Congresso ao aproveitar que o país está distraído com o julgamento e suas consequências para empurrar adiante uma agenda destinada a dilapidar as instituições e a proteger o Centrão e seus acólitos.
Mesmo para os padrões brasileiros, foi um
movimento ousado, ainda mais porque a semana passada foi marcada pelo impasse
na votação de mudanças no foro privilegiado e nas regras para investigar
parlamentares. Em tese, a resistência da sociedade deveria ter feito deputados
e senadores pisarem no freio, mas aconteceu o contrário.
Primeiro, o Senado
Federal aprovou por 50 votos a 24 uma alteração na Lei da Ficha
Limpa que reduz o tempo de inelegibilidade para políticos condenados por crimes
contra o sistema financeiro e improbidade administrativa.
Apresentado pela deputada Dani Cunha (União Brasil-RJ),
filha de Eduardo Cunha,
o texto estabelece que os oito anos de inelegibilidade passam a ser contados a
partir da condenação, e não mais depois do cumprimento da pena. Cria, ainda, um
limite de 12 anos de impedimento para políticos com várias condenações
diferentes.
O argumento do relator, Weverton
Rocha (PDT-MA), espécie de faz-tudo do presidente do
Senado, Davi
Alcolumbre (União Brasil-AP), é que as mudanças são uma
“modernização” da lei. Na prática, elas trazem de volta modernidades como o
próprio Cunha, além dos ex-governadores Anthony
Garotinho e José Roberto Arruda. Só não valem (ainda, pelo
menos) para condenados por crimes como organização criminosa, pelo qual
Bolsonaro é julgado no STF.
Antes de conseguir aprovar a nova regra,
Alcolumbre já havia feito outras cinco tentativas, sempre batendo na trave. Com
o julgamento, abriu-se espaço para uma votação a toque de caixa sem aviso, sem
debate e sem vergonha. Para evitar que a Lei Dani Cunha entre em vigor, agora,
só um veto de Lula,
que não anda em condições de confrontar o Parlamento.
Como se não bastasse, líderes da Câmara
tentam emplacar um requerimento de urgência para um texto que autoriza o
Congresso a demitir o presidente e diretores do Banco Central.
Isso apenas quatro anos depois de o mesmo Congresso ter aprovado a autonomia da
instituição, em que a diretoria tem mandato fixo.
Resultado de amplo debate, a autonomia
protege o BC de pressões e dos cavalos de pau na condução da política
monetária, que já fizeram tão mal à nossa economia. Sem o apoio do Centrão, ela
nunca teria sido aprovada. Mas agora o jogo virou.
Nos últimos tempos, o BC andou ferindo
suscetibilidades de parceiros antigos do bloco — como o Banco Master, comandado
por Daniel Vorcaro, amigo de vários caciques e conhecido patrocinador de
convescotes de políticos com juízes.
O Master passou meses tentando aprovar a
venda de parte de seu capital ao estatal BRB, numa operação de salvamento
controversa que o BC acaba de rejeitar, muito em razão da resistência de dois
diretores. Um deles, Renato Gomes, defendia até a intervenção no Master, que,
entre outras irregularidades, é suspeito de ter repassado ao BRB, antes mesmo
do fechamento do negócio, uma carteira de créditos de cerca de R$ 12 bilhões
sem lastro, de acordo com a auditoria do BC.
Noutra frente, o governo Lula aumentou a
fiscalização sobre as fintechs depois que uma operação da Polícia
Federal (PF) e da Receita
Federal revelou que esses bancos virtuais abrigaram milhões de
contas usadas para lavar dinheiro do mercado ilegal de combustíveis e do PCC. É
um pessoal que não brinca em serviço em Brasília, agora submetido a escrutínio
para o qual o BC é crucial, que pode complicar a vida de muita gente poderosa.
Esse projeto ainda não avançou, mas não faltará faz-tudo para empurrá-lo para a
frente.
É sintomático que isso aconteça com o país
mergulhado num debate doloroso, mas necessário, sobre a saúde da nossa
democracia, julgando pela primeira vez um ex-presidente por tentar dar um
golpe. Sem instituições fortes, não há democracia forte, e fica bem mais fácil
parasitar o Estado. Os chefões do Congresso estão cansados de saber, mas não
estão muito preocupados. O que importa é avançar — de golpe em golpe.
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