Folha de S. Paulo
Julgamento põe em uso lei que dota a
democracia de proteção contra seus inimigos radicais
Às vezes é necessário um observador externo
para nos dar a exata dimensão de acontecimentos que, mesmo quando os sabemos
importantes, tendemos a tratar como assunto doméstico. Disso é exemplo o texto
de capa da revista britânica "The Economist" sobre o julgamento
de Bolsonaro, "Brazil offers America a lesson in democratic
maturity" (Brasil fornece à América uma lição de maturidade democrática),
publicada na edição de 28/8.
Concorde-se ou não com a interpretação ali oferecida, a publicação em si mostra a importância internacional da responsabilização judicial de autoridades acusadas de atentar contra a ordem democrática.
De fato, em muitos países do Ocidente, o
sistema representativo está sob pressão do populismo autoritário. Ali onde este
se apropriou das alavancas do governo e nele foi capaz de permanecer –ou
regressar pelo voto–, vem corroendo por dentro as instituições que alicerçam o
sistema de liberdades. Os Estados Unidos sob Trump são o mais recente e
calamitoso exemplo, pela crueza e rapidez da destruição promovida. Por isso
mesmo, o que aqui se decidir terá repercussões além-fronteiras: servirá de
exemplo.
Os crimes em julgamento no Supremo fazem
parte de um conjunto particular de atentados à democracia: os autogolpes, ou
seja, aqueles que têm por objetivo manter, pela força, o incumbente no poder.
Desde 1945 há registros de perto de 50 tentativas ao redor do mundo. Dadas as
muitas vantagens de quem arquiteta a permanência, são maioria os autogolpes que
dão certo. Incumbentes tem mais informação, recursos políticos e, não menos
importante, tropas. No Brasil republicano, fértil em quarteladas, tivemos
apenas dois exemplos: um bem-sucedido e outro, agora, fracassado.
Êxito teve o autogolpe de 10 de novembro de
1937, com o qual Getúlio Vargas, com apoio militar, estabeleceu o Estado Novo e
mudou para sempre a história do país, na economia e na política. O tempo e os
acontecimentos posteriores se encarregaram de amenizar a imagem daqueles quase
oito anos cruéis.
Para lembrar os maus tempos em que o Brasil
flertou com o fascismo, vale a leitura, com dor e sabor, de "Trincheira
Tropical", livro recente do colega colunista Ruy Castro.
A fracassada tentativa tupiniquim de
autogolpe começou a ser julgada pela Primeira Turma do STF. O rito legal,
que certamente não seria concedido aos democratas se os conspiradores houvessem
vencido, põe em uso a Lei de Defesa do Estado Democrático Direito, nascida em
2021 da ideia de dotar a democracia representativa de proteção institucional
contra seus inimigos.
Assim, o julgamento da trama golpista é um
passo importante para delimitar o campo da disputa política legítima, punindo
aqueles que tentaram ostensivamente quebrar suas regras. Além do mais, julgar
os golpistas ajuda a enfrentar o desafio bem mais complicado de isolar
politicamente a extrema direita que apostou e apoiou a quebra da ordem. Minoria
importante na opinião pública, chegou onde chegou pela legitimidade que, desde
2018, lhe conferiram outras forças que compõem o campo antipetista.
Circunscrevê-la a seu tamanho real seria mais
um exemplo de inspiradora maturidade democrática.
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