quinta-feira, 4 de setembro de 2025

No Parlamento Europeu, agora apoio ao Mercosul e críticas aos EUA, por Assis Moreira

Valor Econômico

Irritação com concessões a Trump, e ao mesmo sinalizações positivas ao acordo com o Mercosul

O Parlamento Europeu durante anos colocou obstáculos, fez críticas duras e frequentes à negociação de acordo comercial da União Europeia (UE) com o Mercosul. Mas Donald Trump voltou em janeiro à Casa Branca e de seu lado impôs um acordo humilhante à UE e é agora o alvo de queixas de bom número de parlamentares.

O presidente da importante Comissão de Comércio Internacional do Parlamento, o alemão Bernd Lange (socialista), expressou essa reviravolta ontem ao detonar o pacote acertado entre Bruxelas e Washington, não vendo nele previsibilidade nem estabilidade para o comércio europeu, e sim desequilíbrio, irrealismo e que precisa de revisão.

Ao mesmo tempo, Lange não poupou entusiasmo à conclusão do acordo com o Mercosul. Prometeu trabalhar duro para a ratificação do acordo até o fim do ano para ‘’oferecer um maravilhoso presente de Natal para o mundo’’ e por tabela mostrar solidariedade com o Brasil atacado por Trump com tarifas de 50%.

‘’Esse chamado acordo com os EUA não é normal’’, reclamou o parlamentar europeu em entrevista coletiva ontem em Bruxelas. A Europa aceita eliminar as tarifas de importação sobre todos os produtos industriais dos EUA e proporciona acesso preferencial para entrada de uma vasta gama de produtos hortícolas e agrícolas dos EUA, incluindo frutos secos, produtos lácteos, frutas e legumes frescos e transformados, alimentos transformados, sementes para plantação, óleo de soja e carne de porco e bisonte.

Por sua vez, os EUA aplicam tarifa de 15% no acesso de produtos europeus no mercado estadunidense. Os europeus ainda se comprometem a comprar US$ 750 bilhões de energia dos EUA e empresas europeias investirem US$ 600 bilhões adicionais em setores estratégicos da economia americana, nos próximos três anos.

Para o influente parlamentar, isso não tem o menor sentido. Pelos seus cálculos, a Europa compra cerca de US$ 100 bilhões de produtos de energia por ano e não tem como aumentar a fatura para US$ 250 bilhões anualmente. Tampouco acha que os EUA tenham capacidade de petróleo e gás para atender uma demanda europeia dessa dimensão.

Sobretudo, Lange constata o óbvio: o acordo entre Bruxelas e Washington viola as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), atropelando a Cláusula de Nação Mais Favorecida (MNF, na sigla em inglês). Essa cláusula exige que os membros da OMC tratem uns aos outros de forma igualitária, exceto quando negociam acordos de livre comércio entre eles.

‘’Como posso explicar porque devemos dar tarifa zero e importantes quotas agrícolas para os EUA e não dar o mesmo tratamento para países do Sul Global?’’, indagou Lange. ‘’A UE sempre foi defensora da ordem comercial multilateral e (agora) perde muita credibilidade. E não quero discriminar países do Sul Global com esse chamado acordo (com os EUA)’’.

A parte agrícola é ainda mais surpreendente. ‘’Ninguém sabe quem realmente estabeleceu quotas para produtos agrícolas (para os americanos) sem avaliação de impacto econômico na agricultura europeia’’, reclamou, exemplificando com várias quotas de milhares de toneladas de importações.

O deputado comparou a situação com a rigidez europeia na negociação com o Mercosul, na qual ‘’todo mundo é realmente sensível sobre produtos agrícolas e quotas. E aqui, vindo do céu, essas cifras apareceram’’ somente beneficiando os exportadores dos EUA.

Pior ainda, como deixou claro Bernd Lange, é que a UE quer exigir que os parceiros se comprometam com o Acordo do Clima de Paris nos acordos comerciais. Só que Trump retirou os EUA desse acordo, e seu menosprezo pelo tema é conhecido. Já na negociação UE-Mercosul ‘’pela primeira vez as obrigações do Acordo de Paris são parte integrante do acordo’’.

Bernd Lange, presidente da Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu — Foto: Divulgação/Parlamento Europeu

O parlamentar rejeitou observações de que o acordo da UE com os EUA é também uma maneira de amarrar a participação americana ao lado de europeus no apoio à Ucrânia. ’’Então somos fracos, não temos possibilidade de nos defender e apoiar a Ucrânia? Isso é realmente crucial discutir’’, reagiu.

Em termos geopolíticos, insistiu Bernd Lange, ‘’é importante estabilizar nossa relação com parceiro confiável’’, deixando implícito que esse não é o caso hoje dos EUA com Trump e voltando a atenção para o Mercosul, algo reiterado mais tarde por vários deputados durante debate.

‘’Após mais de 23 anos de negociações, é realmente o momento para finalizar o acordo com os países do Mercosul’’, afirmou. Disse ser preciso ter também em mente que ‘’o tratamento injusto dos EUA em direção de muitos países continua, e especificamente com tarifas de 50% sobre o Brasil, e é relevante dar solidariedade e parceria com o Brasil’’.

‘’ Nós realmente nos esforçamos bastante para chegar a esse acordo’’, afirmou. ‘’E espero que possamos concluí-lo e ratificá-lo em breve. Se tudo for bem, será um maravilhoso presente de Natal para o mundo, e podermos demonstrar que comércio pode ser baseado em estrutura democrática, participação e confiança’’.

A grande diferença hoje com os EUA, argumentou Lange, é que a Europa não tem decisões tomadas por uma só pessoa. Irônico, disse que isso é costume de 200 anos atrás dos tempos de reis e rainhas. E insistiu que o acordo com Washington vai receber emendas, inevitavelmente. Depois, caberá à Comissão Europeia, o braço executivo da UE, tratar com os americanos.

Em sessão da tarde na Comissão de Comércio Internacional, a diretora de Comércio da UE, Sabine Weyand, foi muito questionada pelas concessões aos EUA.

Ela retrucou dizendo que era preciso ver qual alternativa a Europa tinha. ‘Teríamos desejado que a alternativa fosse comércio baseado em Cláusula da Nação Mais Favorecida (MNF portanto, sem discriminação entre países), como no passado, mas isso não é mais uma opção com os EUA’’, observou. ‘’Os EUA abandonaram MNF e não tem intenção de voltar atrás. O governo Trump está confortável com tarifas e em aumentá-las’’.

A negociadora europeia lembrou a ameaça de Trump de impor tarifas de 30% no acesso de produtos americanos no mercado dos EUA. Com a negociação, a tarifa ficou em 15%, o que mantem o fluxo de comércio. Além disso, acha que o acordo criou uma plataforma de engajamento, pela qual a situação pode ser ajustada. Mas boa parte dos parlamentares não crê em nada disso, e a Comissão Europeia continua sem mandato para carimbar o acordo feito com Trump pelo modelo unilateral do presidente americano.

 

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