quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Um Congresso sem limites republicanos, por Wilson Gomes

Folha de S. Paulo

Casa testou limites da decência ao tentar blindar parlamentares da responsabilização penal

Nos grandes movimentos de protesto de 2013 e 2014, havia uma convicção disseminada de que a classe política era o grande problema nacional. Era urgente renová-la. Foram os anos dos cartazes "desculpem o transtorno, estamos consertando o país", e o desprezo pela política institucional e pelos políticos "que estão aí" tornou-se critério na escolha eleitoral.

Precisávamos de uma política nova, de novos partidos e de renovar o Congresso nacional, segundo a fórmula corrente. E, de fato, vimos surgir novos partidos (inclusive um chamado Novo), as taxas de renovação nas casas legislativas aumentaram e o bolsonarismo apareceu, vejam só, para representar um novo modo de fazer política, desta vez sem corrupção, sem apadrinhamentos, sem velhos vícios —apenas um líder carismático e o povão que governaria com ele.

Era a 54ª legislatura, severamente julgada e condenada, e o debate público refletia a ingenuidade e a agressividade das ruas. Enquanto a fúria movia a massa contra a política institucional, o que me ocorria pensar era: não gostam desta legislatura? Esperem para ver a próxima. Pois tem sido assim em toda parte: quando os que detestam a política se mobilizam com raiva para escolher uma nova classe política, conseguem invariavelmente piorar o que já era ruim.

Estamos na 57ª legislatura da nossa breve história republicana. A "nova política", dominante desde a 56ª, continua mostrando a força dos três C (corrupta, clientelista e corporativa) que a constituem. Os novos políticos (mesmo os mais jovens) são, em geral, parecidos com os dinossauros cujos lugares ocuparam, exceto pela habilidade digital.

Não há sinal de que a cota de virtude republicana tenha aumentado, de que os interesses dos eleitores tenham tomado o lugar central concedido aos interesses particulares no Congresso ou de que a transparência pública, o respeito ao decoro e a abnegação que se esperam de servidores do povo tenham sido incorporados à mentalidade parlamentar. A única coisa que aumentou, exponencialmente, foi o poder das casas legislativas e o acesso dos parlamentares aos recursos do orçamento público.

Um exemplo claro do valor da 57ª foi dado na semana passada. Às pressas e na calada da noite, tentou-se aprovar nada menos que uma emenda constitucional —de caráter despudoradamente corporativo. Não houve divulgação prévia nem discussão pública. Chegaram ao ponto de os deputados tentarem emendar a nossa Constituição sem sequer ter um texto escrito e conhecido. A Carta Magna da nação, amigos, não o regimento interno.

A emenda previa que qualquer investigação contra parlamentares dependeria de autorização política da Câmara dos deputados ou do Senado; que condenações criminais só poderiam ocorrer com dois terços do STF; que prisões preventivas e medidas cautelares precisariam de aval político e revisão periódica do Congresso; e, por fim, que o Judiciário ficaria proibido de revisar decisões do Legislativo que suspendessem processos.

Em resumo, os congressistas pretendiam praticamente constitucionalizar sua imunidade contra a responsabilização penal.

Há, como se diz, tantas camadas de erro nesta tentativa que é até difícil escolher o que destacar. O líder do PL, deputado Sóstenes Cavalcante (RJ), perfeita síntese desta legislatura, nada viu de errado nem na intransparência nem em legislar em causa própria. "Lógico que essa não é uma pauta do eleitor", disse, candidamente. O presidente da Câmara, Hugo Motta, também se expressou com a mesma candura: "É uma demanda que atende o espírito da Casa". Só a ele, diga-se.

Para que ocupar a mente dos brasileiros com bobagens como emendas à Constituição se a pauta nem é deles, mas dos que exercem mandatos, supostamente, em seu nome? Afinal, tem dia que o Congresso é do povo e tem dia que ele é só o órgão sindical dos parlamentares. Se interessa ou não ao povo brasileiro que o sindicato dê imunidade aos seus, isso é irrelevante. Cada um se ocupe dos próprios interesses: os Sóstenes, cavalcantes, cuidam dos seus; o povo, cavalgado, que dê seus pulos.

Claro, o impulso imediato dos ainda lúcidos na selva política é lançar aos parlamentares brasileiros a pergunta imortal de Joseph Welch a McCarthy, muitos anos atrás: "Os senhores não têm nenhum senso de decência, afinal? Já não lhes resta nenhum?". Mas de que adiantaria, se em 2026 —como temo— eleitores movidos por raiva e nojo da classe política escolherão outros espécimes da mesma fauna para compor a nobre 58ª legislatura, renovando o ciclo de más escolhas, frustração, raiva e novas más escolhas?

 

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