Folha de S. Paulo / The New York Times
Além de homicídio, governo promove suicídio e
fratricídio, dilacerando a sociedade israelense e o judaísmo global
Mundo reconhece diferença entre lutar pela
sobrevivência de um Estado e a sobrevivência de um líder
Deixarei para os historiadores o debate sobre
se Israel está
cometendo genocídio na Faixa de Gaza.
Mas o que me parece absolutamente claro agora é que este governo israelense
está cometendo suicídio, homicídio e fratricídio.
Está destruindo a posição de Israel no mundo, está matando civis em Gaza aparentemente sem qualquer consideração pela vida humana inocente e está dilacerando a sociedade israelense e o judaísmo global — entre aqueles judeus que ainda querem apoiar Israel a qualquer custo e aqueles que já não conseguem tolerar, explicar ou justificar o rumo para o qual este governo está levando o Estado judeu e agora querem se distanciar dele.
Fiquei impressionado com este parágrafo da
reportagem do The New York Times publicada sobre os ataques israelenses a um
hospital no sul de Gaza, que mataram pelo menos 20 pessoas, segundo o
Ministério da Saúde de Gaza —entre elas cinco
jornalistas que trabalhavam para veículos internacionais, além de médicos e
várias outras pessoas: "O Exército israelense disse que realizou um ataque
na área do Hospital Nasser, sem informar qual era o alvo. A declaração afirmou
que o exército lamentava ‘qualquer dano a pessoas não envolvidas’,
acrescentando que o chefe do Estado-Maior havia ordenado uma investigação
imediata."
Obviamente, percebendo que muitos ao redor do
mundo ficaram horrorizados com essa explicação —afinal, quantas vezes já
ouvimos isso? — o gabinete do primeiro-ministro Binyamin
Netanyahu emitiu uma rara nota, dizendo que "Israel lamenta
profundamente o trágico acidente".
A verdade, no entanto, é que o que Netanyahu
chamou de "trágico acidente" é o subproduto inevitável de sua
política de prolongar a guerra em Gaza para se manter no poder, evitar seus
julgamentos criminais e impedir qualquer comissão de inquérito israelense sobre
sua profunda responsabilidade no fracasso em evitar o ataque surpresa do Hamas em 7
de outubro de 2023.
Para permanecer no cargo, Netanyahu precisa
do apoio de ministros
da extrema-direita, como Bezalel Smotrich, que promove esforços para cobrir
a Cisjordânia de
assentamentos judeus a fim de impedir o surgimento de um Estado palestino.
Smotrich também incentiva a expulsão de palestinos da Cisjordânia e de Gaza,
para abrir caminho à anexação por Israel.
Mas eis o problema: Israel já devastou o
Hamas como força militar e matou praticamente todos os principais comandantes
que planejaram o ataque de 7 de outubro. Agora, para justificar a continuidade
da guerra, é preciso perseguir comandantes de nível inferior, que vivem e se
escondem entre civis.
Uma coisa é um país em guerra justificar
danos colaterais ao perseguir os principais líderes inimigos. Outra, muito mais
sinistra, é matar e ferir dezenas de civis para tentar eliminar, digamos, o
"adjunto do adjunto" de um comandante.
Também é de uma crueldade sinistra usar o
Exército para deslocar centenas de milhares de civis palestinos de uma parte de
Gaza para outra —sob o pretexto de evacuá-los das zonas de combate— e depois
demolir deliberadamente as casas que eles deixaram para trás, sem qualquer
razão militar real, mas com o claro objetivo de tornar a vida tão miserável que
eles acabem deixando a região de vez. E é vergonhoso interromper e retomar a
ajuda humanitária com a esperança de que as pessoas passem fome a ponto de
abandonar o território.
Mas, como disse, isso não é apenas homicídio
em estado puro; é também suicídio e fratricídio. Israel está a caminho de se
transformar em um Estado pária —a tal ponto que israelenses poderão pensar duas
vezes antes de falar hebraico ao viajar para o exterior.
O governo israelense diz que isso é injusto.
Argumenta que o mundo parece ter esquecido que o Hamas assassinou cerca de
1.200 pessoas; sequestrou aproximadamente 250, incluindo mulheres, crianças e
idosos; e ainda mantém alguns vivos em condições desumanas em túneis e outros
locais em Gaza. A liderança do Hamas poderia ter encerrado todo esse sofrimento
se aceitasse deixar Gaza e libertar os reféns. Ao perpetuar a guerra, o Hamas
também cometeu seus próprios crimes hediondos —o assassinato de reféns
israelenses e o sacrifício de milhares de palestinos em nome de seus delírios.
Tudo isso é verdade —e relevante.
Então, por que o mundo está se voltando
apenas contra Israel agora? Porque se cobra de Israel um padrão mais alto do
que do Hamas, porque o próprio Israel sempre se cobrou um padrão mais alto.
E porque hoje o mundo consegue distinguir
entre uma guerra travada pela sobrevivência do Estado judeu e uma guerra
travada pela sobrevivência política de seu primeiro-ministro. E, finalmente,
porque o mundo já não consegue mais ignorar, como fez por meses, a perda de
vidas civis palestinas em Gaza como subproduto inevitável de uma guerra em que
— acreditava-se — Israel buscava expulsar o Hamas de Gaza e substituí-lo por
uma força de paz árabe em parceria com a Autoridade Palestina. A
AP reconheceu Israel e poderia, se reformada, ser parceira em uma solução de
dois Estados.
Mas, como Netanyahu deixou agora claro que
não permitirá que Gaza seja governada nem pelo Hamas nem pela AP, a guerra cada
vez mais se parece com o que realmente é: um esforço para estender a ocupação
de Israel da Cisjordânia a Gaza. Assim, para muitos ao redor do mundo, parece
que civis palestinos estão sendo mortos diariamente não como consequência
inevitável de uma guerra justa pela sobrevivência de Israel e pela tentativa de
criar um parceiro palestino melhor em Gaza, mas sim para garantir que Israel
não tenha nenhum parceiro palestino em Gaza.
É de se espantar que Israel esteja perdendo
tantos amigos no mundo —assim como potenciais parceiros regionais, como a Arábia Saudita—
para quem isso está ficando cada vez mais evidente?
Quanto ao fratricídio, se a guerra continuar
neste rumo, ela vai dilacerar muitas sinagogas ao redor do mundo durante as
festas judaicas deste ano —entre aqueles que sentem necessidade de apoiar
Israel a qualquer custo e aqueles que já não suportam mais o comportamento
deste governo em Gaza, sobretudo quando veem centenas de milhares de
israelenses saindo às ruas contra seu próprio governo.
Também vai dividir o Partido Democrata nos
EUA, entre aqueles que têm medo de desafiar o influente lobby israelense —com
receio de perder financiamento de campanha para seus adversários republicanos —
e aqueles que já não aguentam mais.
Infelizmente, se isto é suicídio geopolítico, como acredito, tornou-se um suicídio assistido. Há uma pessoa que poderia acabar com tudo isso agora, e essa pessoa é o presidente Donald Trump. Espero estar errado, mas temo que, assim como Trump foi ludibriado por Vladimir Putin a desistir de um cessar-fogo na Ucrânia em troca da ilusão de uma paz total, ele tenha sido ludibriado por Netanyahu a desistir de um cessar-fogo em Gaza em prol da fantasia de Bibi de uma "vitória total."
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