Folha de S. Paulo
Os EUA retornaram, ao menos no papel, ao
princípio da paz em dois Estados
Uma rejeição ao plano de paz reabriria o
cenário da limpeza étnica, com o beneplácito de Trump
"O plano de 20 pontos para encerrar a guerra em Gaza é tudo com que os israelenses sonharam —ou mesmo fantasiaram. Às vezes, parece mais uma lista de exigências de Israel que compromissos diplomáticos" (Roy Schwartz, editor senior do jornal Haaretz). "Netanyahu obteve quase tudo que queria, graças a Trump" (Mohamad Bazzi, professor de jornalismo da New York University). Equivocam-se os dois: se aplicado, o plano dissolveria a utopia genocida do Grande Israel.
A aposta fácil é no fracasso do plano,
porque: a) quase tudo termina em desastre na Terra Santa; b) seu caráter
genérico exige complexas negociações a cada etapa, abrindo as portas para
manobras de sabotagem de Netanyahu e do Hamas. Contudo,
quem está no negócio da análise política, não no das apostas, precisa
reconhecer o principal: os EUA retornaram, ao menos no papel, ao princípio da
paz em dois Estados.
Netanyahu assumiu o programa da ala
extremista de seu gabinete, que prega a limpeza étnica da Faixa de Gaza e
o enterro da ideia de um Estado Palestino. Trump impulsionou tal programa ao
delinear a visão da "Riviera do Oriente Médio".
Num giro de 180 graus, porém, seu plano
afirma o direito dos palestinos viverem em Gaza e, ainda, seu direito a um
Estado independente. Nada disso é invenção do atual presidente americano: são
propostas apresentadas no passado pelo governo Biden e inscritas num esboço
recente formulado por Macron junto com os sauditas.
O giro de Trump foi deflagrado pelo
bombardeio de Doha por Israel. Os países do Golfo beneficiam-se da proteção
estratégica dos EUA. Se essa proteção perde valor, tenderão a procurar outro
protetor —isto é, a China. Não por acaso, da Casa Branca, Netanyahu enviou suas
desculpas ao primeiro-ministro do Qatar. A vaidade, bússola maior de Trump,
desempenha papel protagonista: o presidente americano, que sonha com o Nobel da
Paz, colocou-se na posição de chairman do Conselho da Paz, órgão de supervisão
geral do plano.
Netanyahu diria não, se pudesse. Disse não a
Biden, pois sabia que seu interlocutor jamais abandonaria Israel. Diante de
Trump, só sabe que tudo pode acontecer. O inédito isolamento internacional do
Estado judeu proíbe-lhe brincar de roleta russa com o governo dos EUA. Por esse
motivo, tenta reinterpretar o plano, sugerindo falsamente que ele não contém a
promessa, lá no fim do arco-íris, da autodeterminação estatal palestina.
Mas o sucesso de sua sabotagem exigiria uma negativa do Hamas, o parceiro
tácito de sempre.
O Hamas encontra-se na encruzilhada. Seus
dirigentes exilados inclinam-se a aceitar o plano, pois são cativos do Qatar,
que opera junto com Trump. Por outro lado, os dirigentes em Gaza, que controlam
o destino dos reféns israelenses, tendem a recusá-lo, pois o desarmamento
extinguiria sua influência política. Uma rejeição reabriria o cenário da
limpeza étnica, com o beneplácito de Trump. Seu sim condicional evidencia uma
completa falta de opções.
Sobram motivos para objeções palestinas.
Inexistem garantias firmes sobre a retirada israelense. O Conselho da Paz e a
força internacional de estabilização configurariam um novo protetorado. O
"caminho crível" rumo ao Estado Palestino aparece como mera declaração
de intenções. O Hamas compartilha com o governo de Netanyahu uma oposição
absoluta à paz em dois Estados. O plano de Trump encurrala os dois
inimigos-irmãos.
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