sábado, 4 de outubro de 2025

Sistema disfuncional. Por Miguel Reale Júnior

O Estado de S. Paulo

O presidencialismo sem freios e contrapesos redundou num sistema de irresponsabilidade, gerador de conflitos entre Poderes

A instabilidade política é um mal crônico da República. No Império, a Constituição estatuía o Poder Moderador, exclusivo do imperador, para velar pela manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais Poderes.

Com a República, desaparece o órgão estabilizador, que Rui Barbosa e Pedro Lessa entendiam ter sido substituído pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Isso graças à circunstância de que com a República, pelos Decretos n.º 510/90 e 848/90 e pela Constituição de 1891, atribuiu-se ao STF a competência para declarar lei ou ato do Executivo inconstitucional, podendo limitar os desvios dos demais Poderes. Outro instrumento de controle estava no habeas corpus para debelar ofensa a qualquer direito individual.

Deodoro da Fonseca, eleito em fevereiro de 1891, renuncia em novembro do mesmo ano. Pela Constituição, a vacância na primeira metade do mandato importava em nova eleição, com o que não concordou Floriano Peixoto, o vice. Generais e membros da sociedade contestaram esse abuso, tendo então Floriano, em abril de 1892, decretado o estado de sítio por 72 horas e prendido militares e civis, como José do Patrocínio e Olavo Bilac. Passadas as 72 horas, mantinham-se as prisões.

Rui Barbosa impetrou habeas corpus, em vista da cessação do estado de sítio, mas Floriano pressionou o STF, com a escusa de se tratar de questão política e indeferida a ordem.

Todavia, em 1893, em habeas corpus impetrado em favor dos revoltosos do navio Júpiter, concedida a ordem, o ministro da Guerra enviou ao presidente do Supremo, José Higino, ofício no qual expressava ser a decisão ofensiva à ordem pública. O ministro José Higino respondeu: “Não cabe ao Poder Executivo dar instruções ou determinar a jurisprudência”.

Esta interferência direta do comandante do Exército no campo jurisdicional da Suprema Corte repete-se em duas outras oportunidades: em 20 de outubro de 1965, o STF concedeu habeas corpus a Miguel Arraes, recebendo críticas de militares. O presidente do STF, então, em entrevista a jornal, afirmou ser tempo de os militares se compenetrarem, de não serem tutores da Nação. O general Costa e Silva, ministro da Guerra, no dia seguinte, classificou a posição do Supremo como histórica agressão às Forças Armadas. Em uma semana, editava-se o Ato Institucional n.º 2, aumentando o número de ministros do STF de 11 para 15, construindo uma maioria de apoiadores do regime militar.

Nas vésperas do julgamento do habeas corpus em favor de Lula, em 2018, novamente o então chefe do Exército, general Villas Bôas, se intromete para afirmar em tom de ameaça ser contra a impunidade.

A aposentadoria forçada de ministros do STF marca a História. Getúlio, em 1931, chefe do governo provisório, afastou compulsoriamente seis ministros. O mesmo se deu durante o regime militar em 1968, pelo Ato Institucional n.º 5, com a aposentadoria compulsória dos ministros Vitor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima.

O STF, que Rui Barbosa contava ser o estabilizador, por poder frear os abusos, foi, em vista disso, sempre afrontado, com várias estratégias.

Tentou-se reiteradamente caracterizar na 1.ª República atos de abuso de poder como questão política inapreciável pelo Judiciário. O decreto instituidor do governo provisório, em seu artigo 5.º, excluía de apreciação judicial os atos do Executivo. A Constituição outorgada de 1937 isentava do crivo judicial os atos praticados em estado de emergência, vigorante ao longo de toda a ditadura getuliana. Igualmente, nos Atos Institucionais n.º 1 e n.º 5, vedava-se o controle jurisdicional dos atos praticados com base nesses diplomas.

Outra estratégia consistiu em transformar o Supremo em órgão subordinado ao Legislativo. Na Constituição de 1937, artigo 96, parágrafo único, o Congresso poderia, para salvaguardar o interesse público, anular decisão do STF.

Propostas de deputados do PT ou do PL buscam nulificar decisões do STF. Por exemplo: 1) Proposta de Emenda Constitucional do deputado Fonteles (PT) permite ao STF criar súmula, por decisão de quatro quintos dos seus membros, mas que só terá força vinculante se tal efeito for outorgado pelo Congresso Nacional por maioria absoluta; e 2) proposta do deputado Domingos Savio (PL) autoriza ao Congresso Nacional sustar, por maioria absoluta, decisão do STF, não unânime, transitada em julgado, por extrapolar “limites constitucionais”.

Em ataques ao Supremo, Jair Bolsonaro e acólitos pretendem que o Senado casse ministros. Já disse Rui Barbosa, em discurso no Instituto dos Advogados Brasileiros, que é a mais grave das afrontas à Constituição o presidente ou o Congresso Nacional se converterem em instância julgadora da mais alta Corte, por discordar de suas decisões.

Em suma, o presidencialismo sem freios e contrapesos redundou num sistema de irresponsabilidade, gerador de conflitos entre Poderes, no qual o Legislativo se transforma em órgão extorsionário em busca de vantagens.

O sistema político é disfuncional, levando também a excessos da parte do STF. Só uma revisão geral permitirá a superação do mal crônico.

 

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