CartaCapital
Ainda acuados pelas ruas, os deputados
aprovam de forma unânime a isenção do IR para quem ganha até 5 mil reais
O Brasil, paraíso fiscal dos ricos, vai ter um sistema tributário um pouco menos injusto a partir do próximo ano. As mudanças na lei do Imposto de Renda aprovadas pelos deputados farão sobrar mais dinheiro no bolso de 15 milhões de assalariados, enquanto 141 mil endinheirados terão de pagar uma cota mínima hoje inexistente para eles. O Senado ainda precisa chancelar as mudanças, mas já havia aprovado coisa parecida uma semana antes da decisão da Câmara, daí que só uma surpresa impedirá o presidente Lula de cumprir a promessa da campanha de 2022. Uma surpresa como aquela vista entre os deputados, só que às avessas. A proposta do governo sobre o IR passou na Câmara por 493 votos a zero. Disseram “sim” até a oposição bolsonarista e a turma do tal “Centrão” sempre pronta a proteger a elite. O motivo da unanimidade? As ruas e as redes sociais.
Os protestos populares contra a proteção
a congressistas fora da lei e a anistia a golpistas condenados jogaram
os parlamentares nas cordas. Palco do pacto de impunidade, a Câmara precisava
limpar a barra aos olhos da opinião pública. Nada melhor do que uma causa
simpática, como o fim da taxação de uma parcela dos trabalhadores. Bem que Lula
tinha dito, horas antes da votação, ser “preciso fortalecer a participação
popular”. O comentário surgira em uma reunião com os coordenadores de um
plebiscito que coloca os brasileiros diante de duas perguntas: 1) é a favor de
cobrar mais imposto de quem ganha acima de 50 mil reais, para tornar possível
isentar quem ganha até 5 mil? e 2) é a favor de reduzir a jornada de trabalho
sem diminuir o salário? Desde julho, o plebiscito obteve 1,5 milhão de
assinaturas, e os coordenadores (movimentos sociais, partidos progressistas)
acreditam que o número dobrará até 12 de outubro, data final da coleta.
Lula, que tinha ficado ao lado das ruas e
criticado os deputados após o pacto da impunidade, fez, digamos, um carinho na
Câmara tanto na véspera quanto no dia da aprovação do novo imposto de renda.
Estendeu-lhe a mão. “Às vezes a gente tem rusgas, às vezes tem divergências,
mas, na essência, o Congresso aprovou tudo o que precisávamos que fosse
votado”, declarou em um evento no Palácio do Planalto. Na noite seguinte, com a
lei triunfante, usou o ex-Twitter: “A Câmara deu hoje um passo histórico na
construção de um Brasil mais justo”. Palavras de ordem, aliás, na boca de
deputados e de ministros lulistas após a aprovação.
A conta será paga por quem recebe a partir de
50 mil por mês
O País da tributação injusta é obra antiga e
de autores conhecidos. “O poder econômico controla a tributação, quem paga
imposto de renda no Brasil é assalariado”, afirma Dão Real Pereira dos Santos,
presidente do Sindifisco, sindicato dos auditores da Receita Federal. O peso da
taxação sobre o consumo é maior do que em cima da renda e do patrimônio, ao
contrário do observado na Europa e nos Estados Unidos. É um primeiro traço da
iniquidade. Os cidadãos de baixa renda não conseguem poupar, gastam tudo em
consumo destinado à sobrevivência. Quando visa a renda, o sistema sacrifica mais
o povão. Um trabalhador recolhe 27,5% descontados na fonte, enquanto um
milionário tem carga efetiva inferior a 3%. O caráter regressivo da tributação
faz a desigualdade brasileira ser pior do que o imaginado, segundo Theo Palomo,
pesquisador do Observatório Fiscal da União Europeia. O 1% mais rico abocanha
27% da renda nacional. Nos EUA, 19%. Na França, 11%.
Os privilégios fiscais dos ricos sabotam o
Brasil desenhado na Constituição. A Carta de 1988 foi concebida para criar um
Estado de bem-estar social, ou seja, para que a população tivesse direitos
proporcionados por serviços públicos, como saúde, educação, assistência e
previdência. É um sonho caro, requer financiamento adequado por meio de
impostos, anota Santos. Não demorou para os objetivos constitucionais serem
minados ao longo do tempo. Em 1989, a gestão de José Sarney mudou o IR. Das
sete alíquotas, sobraram duas. A máxima, antes de 45%, caiu a 25%. Em 1995, a
administração de Fernando Henrique Cardoso acabou com a mordida sobre lucros e
dividendos pagos por empresas aos sócios. O Brasil é um dos raríssimos casos de
dividendo longe das garras do “leão”.
Com o projeto aprovado na Câmara, os dividendos voltarão a ser taxados. Vai funcionar da seguinte maneira para os ricos, definidos como aqueles com renda acima de 50 mil por mês. Somam-se todos os ganhos desse contribuinte, inclusive com dividendos, e verifica-se quanto foi pago de imposto de renda. Caso não tenha sido atingido um porcentual mínimo estabelecido na lei, o contribuinte será taxado adicionalmente. O patamar mínimo sobe de forma gradual até o teto de 10% aplicáveis a faixas de renda superiores a 100 mil mensais. O governo aposta numa arrecadação de 25 bilhões de reais por ano com a cobrança sobre os endinheirados, um clube formado por 141 mil indivíduos. A verba tapará o buraco financeiro decorrente da isenção para os trabalhadores. “É um pequeno passo no sentido da justiça tributária”, afirma o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas.
Pelo texto aprovado na Câmara, haverá isenção
total para salários de até 5 mil. A isenção vigente, válida para declarações a
ser entregues em 2026, vai até 3 mil reais. Na nova regra, uma professora com
um contracheque de 4.867 reais poupará 3.970 reais anuais. Quase um 14º
salário. Segundo a equipe econômica, 10 milhões de brasileiros vão ficar livres
do fisco. Não é muito em termos populacionais (o País tem 203 milhões de
habitantes), mas é em termos de contribuintes. A Receita recebeu 45 milhões de
declarações de pessoas físicas neste ano. Haverá ainda isenção parcial para
holerites de 5 mil a 7,3 mil. Neste caso, será criada uma “escadinha” até
começar a taxação completa das alíquotas variáveis de 7,5% a 27,5%. Serão
favorecidos mais 5 milhões de cidadãos.
A lei votada na Câmara é praticamente
idêntica à proposta enviada em março pelo governo. Uma diferença é que, na
versão original, a isenção parcial ia até 7 mil reais. A ampliação para 7,3 mil
ocorreu na comissão especial de deputados que examinou o projeto inicialmente.
No plenário, o relator, Arthur Lira, do PP de Alagoas, rejeitou as tentativas
da oposição de salvar milionários. Uma vitória e tanto de Lula, pois Lira é ele
próprio da bancada da elite e um bolsonarista enrustido. A votação final teve
uma única emoção de última hora. A pedido do PSB, partido governista, e do
Novo, oposicionista, o relator aceitou um dispositivo que manda o Executivo
apresentar, em um ano, uma lei de correção anual da tabela do imposto de renda.
Congelada de 2015 a 2022, a tabela voltou a ser ajustada no atual governo,
embora ainda acumule grande defasagem desde 1996, conforme o Sindifisco.
O Lira do relatório ao gosto de Lula não agiu
sempre assim à frente do projeto. Cozinhou o texto por mais de seis meses,
namorou a ideia de livrar a cara dos ricaços. Tudo com a cumplicidade do aliado
e comandante da Câmara, Hugo Motta, do Republicanos da Paraíba. A dupla sentiu
o tranco das ruas e das redes sociais. No escurinho do gabinete de Lira foi
gestado o acordão da impunidade que motivou os protestos. Motta tinha sido um
dos principais, se não o principal, alvo das ruas, pois coube a ele botar em
votação a proteção parlamentar, posteriormente enterrada no Senado, e a
urgência para anistiar golpista, cadáver ainda insepulto.
“Passo histórico”, comemorou o presidente
Lula, ao ver cumprida a promessa de campanha
Uma rivalidade política alagoana também havia
deixado Lira em situação difícil e o tinha empurrado a colaborar com o governo.
Graças a Renan Calheiros, inimigo do deputado, o Senado tinha aprovado no fim
de setembro uma isenção do IR nos moldes defendidos por Lula e pelo ministro da
Fazenda, Fernando Haddad. O objetivo do senador do MDB era jogar luz sobre o
que considera postura chantagista do deputado, que usaria a batalha congressual
mais importante de Lula no ano para viabilizar votações de interesse do
direitismo e do “Centrão”, entre eles o pacote da impunidade, e para arrancar
um compromisso de neutralidade governamental na eleição para o Senado em
Alagoas no ano que vem. Calheiros quer se reeleger, Lira sonha em se tornar
senador também. Vão ser duas vagas em disputa, e o emedebista trabalha contra a
eleição do pepista.
Cálculos eleitorais são um outro ingrediente
para entender a aprovação unânime da nova lei do Imposto de Renda. Votar contra
o projeto poderia ser um tiro no pé para os deputados interessados em renovar o
mandato. A oposição disse “sim”, porém sem deixar a hipocrisia de lado. “Você,
brasileiro, não comemore essa isenção”, comentou no plenário da Câmara o
deputado Luiz Lima, do Novo do Rio de Janeiro. Rosângela Moro, do União Brasil
de São Paulo, que também deu voto favorável, escreveu no ex-Twitter: “Medida
populista em ano pré eleitoral”.
A isenção para salários de até 5 mil e a
taxação dos milionários foram promessas de Lula na última campanha.
Materializadas, vão melhorar um pouco as condições de vida dos beneficiados,
daí o potencial para contribuir tanto com a atividade econômica quanto com a
reeleição do petista. A taxa de desemprego está em níveis mínimos (5,6% em
agosto) e o salário médio é recorde (3,4 mil reais em agosto) mesmo com a
vigência do juro mais alto do Banco Central em 19 anos (15%), e a explicação
são os repasses de programas sociais, segundo o economista Marcio Pochmann,
presidente do IBGE. É possível que a isenção de IR tenha efeito similar na
economia, na medida em que engordará a carteira e, por tabela, estimulará o
consumo das famílias. Além disso, pesquisas de avaliação do governo apontam o
eleitorado da faixa de renda de 2 a 5 salários mínimos, aquele favorecido com o
novo IR, como mais insatisfeito com a gestão Lula do que a população mais
pobre.
Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.
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