O Globo
Coube a Pedro Bial a fiel definição sobre a existência tão breve e, ao mesmo tempo, notável de Marceu Vieira, que morreu aos 63 anos, na última segunda-feira. Deixou na terra uma legião de viúvos, viúvas e órfãos. Presença amorosa, companhia serena, preciso na escrita, gigante no talento, Marceu foi, para os contemporâneos, referência; para os jovens, inspiração. O apresentador da TV Globo, com quem trabalhou nos últimos anos de uma vida encurtada pelo câncer, escreveu que o amigo viveu em estado de poesia. Morto, virou poema.
Pois, no fim da tarde seguinte à morte do meu
amigo, a poesia foi consolo. A convite de Afonso Borges, grande organizador de
eventos literários do país, participei de mesa do projeto Palavra Acesa,
no Museu
do Amanhã. Neste mundo, neste Brasil, neste Rio de Janeiro, uma dupla e um
mediador, todo mês, se reúnem para debater poemas consagrados. Em agosto, o
próprio Afonso conduziu o diálogo entre a ministra Cármen Lúcia e Chico César,
cantor e compositor, sobre o “Que país é este?”, de Affonso Romano de
Sant’Anna. Os versos Uma coisa é um país, outra um fingimento. Uma coisa é um
país, outra um monumento. Uma coisa é um país, outra o aviltamento foram parar
no voto da única mulher do STF, integrante da Primeira Turma, no julgamento dos
integrantes do núcleo crucial da trama golpista, entre os quais o ex-presidente
Jair Bolsonaro.
Improvável coincidência, a mesa que partilhei
com José Miguel Wisnik (professor, escritor e compositor) e Sérgio Abranches
(cientista político e escritor) foi dedicada a “No meio do caminho”, de Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), poeta favorito de Marceu, soube depois. Quem
leu o poema foi Pedro Drummond, neto do autor. Publicada originalmente na
“Revista de Antropofagia” (1928) e, na sequência, em “Alguma poesia” (1930),
livro de estreia de Drummond, a obra foi recebida como escândalo literário. No
total de dez versos, a sentença “tinha uma pedra” aparece sete vezes; “no meio
do caminho”, seis.
Eu tinha lido o poema para tarefas escolares
na infância e na adolescência. Revisitei-o ocasionalmente na juventude, nunca
depois dos 50 anos. A leitura na maturidade conduziu-me para as “retinas tão fatigadas”
de um poeta, à época, com 25 anos. Em 1927, ele e a mulher, Dolores, tinham
perdido o primogênito, Carlos Flávio, que viveu apenas meia hora. É possível
estar velho e cansado aos 25; e tomado de vitalidade aos 80 — aí estão Chico,
Caetano, Gil, Paulinho, Ivan... Idade cronológica não é precisa; Tempo, orixá.
Foi ele quem me guiou na (re)travessia atlântica para uma interpretação
afrocentrada ou, como definiu meu amigo Abranches, decolonial da peça
drummondiana. A professora-doutora Helena Theodoro me ensinara que, na tradição
afro-brasileira, o Universo é compreendido como mundo visível, que vemos,
tocamos, racionalizamos, e também invisível, que sentimos, intuímos.
Por essa lente, encarei Drummond. Na
“Enciclopédia brasileira da diáspora africana” (2004), Nei Lopes, compositor,
cantor, pesquisador, dicionarista, ensina que camiño, em Cuba, é o mesmo que odu. Designa destino. É
ele que determina a personalidade, a ocupação e a sorte de cada indivíduo. Em
“Kitábu” (2005), explica que Exu e Bará são os donos dos caminhos e dos
destinos, mensageiros de Olorum, o Deus maior, e dos demais orixás. Na
mitologia iorubá — cabe lembrar que mito não é rito, embora fundamente
religiosidade —, Ogum é a divindade do ferro, da tecnologia. É o orixá que nos
acompanha nas estradas, veredas. Drummond tem obra farta em trilhos, trens e
minério extraído das Minas Gerais. No
meio, a pedra, evocação a Xangô, orixá do fogo, dos trovões, das pedreiras. No
candomblé, otá é a pedra onde se assenta a força mística, o axé. Em tupi, ita é
pedra. Itabira, município mineiro onde nasceu o poeta significa pedra que
brilha, reluz.
De tão controversa, a obra mereceu, segundo
Wisnik, um livro inteiro de Drummond, “No meio do caminho: biografia de um
poema” (1967), com a coleção de críticas, textos, charges e ilustrações que
motivou. Foi examinada pela forma, pela redundância, pela modernidade, pelo
significado. Quase centenária, carrega atualíssimas interpretações política (a
ameaça autoritária no curso da democracia) e ambiental, como destacou o
professor, ao rememorar a oposição firme do poeta à mineração, que acabou por
dizimar o Pico do Cauê, na cidade natal.
“No meio do caminho” trata de trajetória e
obstáculo, repetição e fadiga. Pelos mitos de África, desvela destino,
proteção, acolhimento, fé, confirmação. Num coração enlutado, saudade. E
conforto.
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