O Globo
Morreu alguém relevante, torna-se quase
mandatório exibir algum vínculo com o famoso que nunca soube da nossa
existência
Uma das melhores coisas de usar apenas
socialmente as redes sociais — além de dar uma folga aos haters, claro — é não ter de fazer
o obituário de cada celebridade que “nos deixa”.
Essa é uma das leis não escritas da internet:
morreu alguém relevante, torna-se quase mandatório exibir algum vínculo com o
famoso que nunca soube da nossa existência — mas, depois do último suspiro, é
como se fosse o padrinho que nos pegou no colo, a tia de consideração que todo
Natal mandava meias de presente.
Em cada um que morre, morremos um pouco. Vai com o morto parte da nossa história, da nossa memória afetiva. Estivemos vivos juntos — nós aqui, em Coxiporé do Norte, ele lá em Los Angeles ou no Leblon. Sob o mesmo sol — nós, na canícula; ele sob um ombrelone — e respirando o mesmo ar — vá lá, a atmosfera do mesmo planeta: a nossa com o monóxido de carbono da Avenida Brasil, a dele com a lavanda da Provença. Mas a morte nos irmana.
Claudia Cardinale, no auge da beleza,
apareceu em inúmeros tributos on-line, inclusive na página de quem nem
imaginava que ainda estivesse viva. Seu memorial virtual terá vindo poucas
postagens depois do pesar pelo passamento de Robert
Redford, inesquecível como Butch Cassidy (ou seria o Sundance Kid?), que os
mais jovens só conhecem como o barbudo que acena, num meme. Pouco antes, no
pesar por Terence Stamp, ora a foto do General Zod de “Superman”, ora a de
Bernadette, em “Priscilla, a rainha do deserto”, quase nunca a do visitante sem
nome de “Teorema”. Não nos iludamos: cada um de nós enterra um morto diferente,
ainda que sob o mesmo nome.
Lamentar que Hermeto ou Arlindo Cruz “se
foram” (dá-lhe eufemismo nessa hora!) supre o fato de nunca termos tido um
único disco deles. Que o último filme do Gene
Hackman que vimos tenha sido “Os imperdoáveis” ou “Operação França”
(era ele, não?) é o de menos. Seu trágico fim é a chance de que precisamos para
nos redimir de tê-lo esquecido esse tempo todo.
Por menos que se conheça a obra de alguém, a
rede social impelirá a um panegírico post mortem, em sinal de pertencimento à
tribo. Fará parte do luto, real ou performático, uma breve citação ao amor, meu
grande amor, por Angela Ro Ro, ao insensato coração de Nana
Caymmi ou, entregando a idade, um verso descontextualizado de
“Rock’n’roll lullaby” por Francisco Cuoco.
Morremos muitos (você, eu, Ed Mort, Dora
Avante, a velhinha, o analista, as cobras, as palavras) com o Veríssimo. Morre
um tanto do que eu sei, mas não devia, e da implosão da verdade, com Marina
Colasanti e Affonso Romano. No Facebook e
no Instagram,
com usuários cada vez mais velhos, lamentamos na dos outros nossa morte
antecipada. É por nós que os sinos virtuais dobrariam, caso existissem; é a nós
que todos os obituários se referem.
Se Françoise Hardy, Alain
Delon e Rita Lee morreram,
então é provável que ninguém escape da iniludível. E, cada vez mais solitários,
será com a plateia amorfa e anônima das redes que compartilharemos a angústia
de perceber que os da nossa idade não precisam mais dos artifícios de acidentes
ou de overdoses para ir estudar a geologia dos campos santos.
Larguei de mão as redes sociais porque não me
faz bem ser odiado e prefiro não odiar ninguém. Mas ando com uma paradoxal
síndrome de abstinência desse velório virtual promovido cada vez que morremos
um pouco. E como temos morrido ultimamente!
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