CartaCapital
O presidente brasileiro vive o melhor momento
do mandato. E conta com a experiência do Itamaraty para não cair na arapuca do
norte-americano
Uma enorme expectativa foi criada em torno da possibilidade de uma reunião entre os presidentes Lula e Donald Trump, desde que este revelou, na Assembleia-Geral da ONU, que ambos haviam trocado cordialidades nos bastidores durante 39 segundos. Sem dúvida, o encontro seria um primeiro passo importante para distensionar a relação entre os dois países, depois da chantagem tarifária (associada à extinção do processo contra Jair Bolsonaro) e de todas as grosserias e mentiras ditas sobre o Brasil por Trump e alguns de seus principais assessores.
Contudo, passados os primeiros dias do aceno
de Trump, não
se tem notícia de nenhum avanço na construção da reunião ou mesmo de
um contato telefônico. O histórico do norte-americano recomenda cautela. Useiro
e vezeiro em armar emboscadas para presidentes de outros países nos salões da
Casa Branca, ele já constrangeu Volodymyr Zelensky, da Ucrânia, e Cyril
Ramaphosa, da África do Sul.
O próprio comentário de Trump, na ONU,
fornece pistas nada auspiciosas sobre suas intenções para com o Brasil. Ele
disse que só faz “negócios” com gente que gosta. Mais claro, impossível. Trump
governa com mentalidade de empresário predador que quer se dar bem à custa dos
outros. Não respeita a soberania de outros povos. Nem sabe o que é isso.
Atropela o que for preciso para atingir seus objetivos.
Sua agressividade é tão desavergonhada que
parte da imprensa norte-americana passou a chamar as políticas de seu governo
de “Doutrina Donroe”, alusão à conhecida “Doutrina Monroe”, estabelecida em
1823 pelo presidente James Monroe, para definir as Américas como zonas de
influência dos EUA. O princípio da hegemonia estadunidense foi adotado por
vários de seus sucessores. Em 1901, Theodore Roosevelt ampliou a envergadura
expansionista com a política do Big Stick (grande porrete), que atravessou o
século XX e está na raiz do apoio a intervenções e golpes militares em países
que consideram ser o seu backyard (quintal). Como fizeram aqui em 1964.
Trump lança mão da doutrina de 200 anos para
tentar assegurar a supremacia estadunidense num mundo em transformação
acelerada por vários fatores. Alguns mais evidentes: a ampliação planetária da
influência da China e seu desenvolvimento tecnológico, a crise climática e a
voracidade do oligopólio digital (basicamente, norte-americano) por recursos
minerais no assombroso mundo novo da Inteligência Artificial.
O que Trump levará para a mesa com Lula? Por
ora, aguardemos, confiando na competência da diplomacia nacional, orientada
pela postura altiva de Lula na defesa da nossa soberania. Na Assembleia-Geral,
o brasileiro não falou apenas para os Estados Unidos. Discursou para o mundo e
para a história, sem esquecer nenhum dos temas espinhosos da geopolítica
mundial. Foi a melhor de todas as suas apresentações na ONU.
Foi também em Nova York, na “Cúpula da
Democracia”, com líderes da América Latina e da Espanha, que Lula pôs o dedo na
ferida e refletiu sobre uma questão essencial também no front interno. “Em que
momento a esquerda errou para permitir que a extrema-direita crescesse com a
força que está crescendo? É virtude deles ou incompetência nossa?” Ele mesmo
indicou respostas: “Porque muitas vezes a gente ganha as eleições com um
discurso de esquerda e, quando a gente governa, a gente atende muito mais aos
interesses dos nossos inimigos, da imprensa, do mercado, dos adversários”.
Lula faz o oportuno mea-culpa no melhor
momento de seu terceiro mandato. A economia apresenta bons números (exceto os
juros), a comunicação do governo melhorou, a pauta da justiça tributária chegou
à opinião pública. Ele está mais confortável nas pesquisas e viu, no Senado, a
derrota de uma aberração que a Câmara havia aprovado e que caiu na boca do povo
como “PEC da Bandidagem”, porque não pode ser outra a definição da proposta
derrubada.
Quando ainda era ameaça, a “PEC da
Bandidagem” teve o único mérito de ser a força motriz que levou milhares de
cidadãos às ruas numa tarde de domingo, convocados pela realeza da música
popular brasileira. A manifestação de 21 de setembro, em Copacabana, foi
protesto de 1968, foi todos os festivais da canção, foi campanha das “Diretas
Já”, roda de samba e Avenida Sapucaí, com os nossos ídolos de cabelos brancos a
nos dizer, com a força e a beleza de suas canções, o tanto que ainda temos por
fazer, tanto por lutar, tanto por construir este País. Parece, enfim, que
retomamos o fôlego das ruas. Estamos no melhor momento da travessia para
2026.
Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.
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