quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Memória da ditadura dificulta redução das penas de Bolsonaro e generais. Por Luiz Carlos Azedo

Correio Braziliense

A comparação insistente com a Lei de Anistia de 1979, contudo, tem sido um tiro no pé. O país presencia solenidades em que o Estado reconhece assassinatos políticos

O ato em defesa da anistia para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e demais condenados por tentativa de golpe de Estado, realizado, nesta terça-feira, na Esplanada dos Ministérios, demonstra a fragilidade política da proposta. Batizada de “caminhada pela anistia”, a manifestação buscava pressionar a Câmara dos Deputados, onde a chamada “PEC da dosimetria” está paralisada no gabinete do relator, deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP).

Durante o ato, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) tentou animar seus apoiadores: “Não tem sido fácil. Assim como ele (Bolsonaro) não baixou a cabeça, nós não vamos baixar a nossa. Estamos a um passo de conseguir aprovar essa anistia”. Já a deputada Bia Kicis (PL-DF) criticou o abrandamento das penas e rejeitou negociações com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF): “Não queremos qualquer coisa. Não queremos dosimetria. Nós queremos Bolsonaro”.

A comparação insistente com a Lei de Anistia de 1979, contudo, tem sido um tiro no pé. Em pleno ciclo de revalorização da memória das vítimas da ditadura, o país presencia solenidades em que o Estado brasileiro reconhece oficialmente assassinatos cometidos por seus agentes. Hoje, o Ministério dos Direitos Humanos e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos realizam, na Faculdade de Direito da USP, a 2ª entrega de certidões de óbito retificadas — 102 ao todo — com a inscrição: “Morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população, identificada como dissidente política por regime ditatorial instaurado em 1964”. Desde janeiro, por decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cartórios de todo país estão emitindo essas certidões.

Há exatamente 50 anos, o advogado e jornalista Orlando Bomfim Junior, dirigente do antigo PCB e responsável pelo jornal Voz Operária, foi sequestrado em Vila Isabel e levado para São Paulo, onde foi assassinado com injeção de matar cavalo e jogado num rio. Seu corpo nunca apareceu. Capixaba de Santa Teresa, radicou-se em Belo Horizonte, onde cursou direito na Universidade Federal de Minas Gerais. Também exerceu a profissão de jornalista, tornando-se, ainda jovem, secretário de redação no Estado de Minas. Em 1946, foi eleito vereador em Belo Horizonte. Foi um dos signatários do Manifesto dos Mineiros, em outubro de 1943, documento esse que acelerou a derrubada do Estado Novo.

Feridas reabertas

Em 1958, Orlando Bomfim mudou-se para o Rio de Janeiro, onde dirigiu o diário Imprensa Popular e a revista Novos Rumos. Era casado com Sinésia de Carvalho Bomfim e pai de seis filhos. Em 8 de outubro de 1975, 17 dias antes da morte de Vladimir Herzog, um filho de Orlando Bomfim recebeu telefonema anônimo, em que algum amigo de seu pai comunicava a prisão de Orlando e pedia que a família contratasse um advogado e comunicasse o fato à ABI — Associação Brasileira de Imprensa. Foi impetrado um habeas-corpus em seu favor junto ao Superior Tribunal Militar pelo advogado Humberto Jansen Machado, da ABI.

Em 31 de outubro, a família recebeu a informação, por meio de amigos e de áreas militares, de que ele estava preso no DOI-Codi/RJ. Mas, 11 dias depois, o I Exército informava que ele não estava e nunca estivera lá. A resposta de outras áreas militares seria idêntica, ninguém assumia sua prisão. De acordo com declarações do ex-sargento do DOI-Codi/SP Marival Dias Chaves do Canto, (Veja de 18/11/1992), Orlando foi assassinado com uma injeção para matar cavalos. Foi capturado no Rio de Janeiro pelo DOI-Codi de São Paulo e levado para um cárcere na Rodovia Castelo Branco, onde foi executado, sendo seu corpo jogado na represa de Avaré, no trecho entre a cidade de Avaré (SP) e a rodovia Castelo Branco.

Dezessete dias após seu desaparecimento, o país foi chocado pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura, morto sob tortura em 25 de outubro de 1975 nas dependências do DOI-Codi paulista. A versão oficial — suicídio com um cinto — caiu por terra graças a testemunhos e à persistência da sociedade civil. Herzog, que havia retornado da BBC em Londres para trabalhar no Brasil, tornou-se o ícone da luta por verdade e justiça. Cinquenta anos depois, um ato inter-religioso na Catedral da Sé reafirmará seu legado.

Essas rememorações corroem a tentativa de vitimizar Bolsonaro e equiparar a perseguições políticas as condenações judiciais legítimas de envolvidos na tentativa de golpe de oito de janeiro entre os quais quatro generais de exército e um almirante de esquada. Diferentemente dos opositores da ditadura, que foram presos, torturados e mortos por lutar pela democracia, o ex-presidente foi julgado com direito a ampla defesa, sob o império da Constituição de 1988. A memória da ditadura desmoraliza o argumento da anistia e devolve ao debate público a consciência de que democracia e impunidade são incompatíveis. Nesse contexto, até mesmo a “PEC da dosimetria” nasce sem legitimidade moral e política. A defesa da anistia, longe de absolver, reabre feridas que o país ainda tenta cicatrizar.

 

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