segunda-feira, 14 de março de 2016

Berlusconi e o impeachment - Marcos Nobre

• A Lava-Jato quer evitar o destino da Mãos Limpas

- Valor Econômico

Não é o governo que está paralisado, é o país. Sistema político, sociedade e economia estão travados. Em um impasse como esse, mudar o governo parece ser uma saída. Parece ter o poder de criar a espada que vai cortar o nó de todas as desgraças. O problema é que o nó precisa mesmo é ser desatado, sem romper a corda das instituições democráticas. Não há espada nem solução mágica para vencer o emaranhado em um sentido positivo.

Especialmente porque os nós são apertados pela força-tarefa da Lava-Jato. A verdadeira promessa da operação não é limpar o país da corrupção. Essa é uma tarefa que vai muito além de uma única operação, que depende de que se torne rotina institucional. O avanço real que a Lava-Jato promete neste momento é a demonstração cabal de que toda e qualquer pessoa é realmente igual perante a lei, não importando seu cargo ou quanto custe a hora de seus advogados.

A Lava-Jato é, sim, seletiva. Atinge com muito mais rigor o PT e suas figuras mais destacadas do que qualquer outro partido. É claro que isso pode refletir preferências pessoais de alguns dos membros da força-tarefa. Mas a seletividade se explica antes pela posição de liderança do governo que, durante os últimos 13 anos, o PT ocupou e supostamente ainda ocupa. A força-tarefa age para impedir que essa posição lhe dê condições de bloquear a operação.

A irmã e inspiradora da Lava-Jato, a operação Mãos Limpas italiana, foi trancada desde cima pouco mais de dois anos depois de lançada, quando, em 1994, Silvio Berlusconi se tornou primeiro-ministro. A Mãos Limpas conseguiu fazer um bom estrago em esquemas de corrupção que, durante décadas, ligaram o setor privado e a política oficial na Itália. Mas ficou pela metade.

Foram eleições gerais que levaram Berlusconi ao poder. Aliás, foi a única vez em que eleições para as duas casas legislativas ocorreram depois de passados menos de dois anos da eleição anterior, o que permite medir o enorme impacto social e político da Mãos Limpas. Pode-se analisar e avaliar de diferentes maneiras essa eleição. Mas o fato é que esse primeiro governo de Berlusconi interrompeu a operação, circunscrevendo de maneira brutal o círculo dos atingidos: quem já tinha sido pego foi jogado aos leões; o resto continuou como se nada houvesse.

É esse destino que a Lava-Jato parece querer evitar. Em princípio, isso permite prever que, se Dilma Rousseff for afastada, seja de que maneira for, a operação deverá mirar em quem quer que assuma o seu lugar. Mudar algumas das peças no tabuleiro não muda o fato de que é o sistema político como um todo que está em xeque-mate. Se a Lava-Jato seguir na mesma trilha após um eventual impeachment, deve fazer de tudo para que o xeque-mate persista.

Para os objetivos da força-tarefa, Dilma Rousseff é a presidente perfeita. Não tem poder para governar, muito menos para bloquear a operação. Mais paradoxal ainda, depende da continuidade da Lava-Jato para tentar manter seu mandato. A desorganização do sistema político que a impede de governar é, ao mesmo tempo, a condição para que se mantenha no poder, ainda que nessa versão mambembe que se conhece há já 15 meses.

Submeter Dilma Rousseff ao impeachment não significará fazer um pacto como o que eleições costumam celebrar. Muito menos é garantia automática de estabilização. Pelo contrário, se a Lava-Jato continuar na mesma trilha, o fato de o processo de impeachment ser dirigido por figuras diretamente atingidas pela operação tem boas chances de aumentar ainda mais a desorganização do sistema político. Sem contar que não vai ser tarefa evidente conseguir combinar com os mais diferentes tipos de russos que estão nas ruas. O impeachment pode resultar em mais um fracassado acordão de cúpula, que corre o alto risco de durar o tempo de um vazamento de delações premiadas já à disposição da Lava-Jato.

Quando Lula partiu para tomar de vez o governo, nas duas últimas semanas, a Lava-Jato reagiu imediatamente, colocando-o sob fogo cerrado e neutralizando a investida. O que está em jogo no impeachment é avaliar se o mesmo vai acontecer com Michel Temer caso o processo prospere. A questão é saber se Michel Temer passará ou não à condição de alvo privilegiado da Lava-Jato, se será visto pela força-tarefa como ameaça existencial à operação no caso de vir a assumir a presidência. Pelo histórico até aqui, a chance de que isso aconteça é alta. E é isso também o que leva outra figura chave do momento atual, Renan Calheiros, a ver o impeachment com grande desconfiança.

A diferença de avaliação desses dois políticos mede bem a divisão do sistema em relação ao impeachment. A oposição formal simplesmente não conta nessa divisão, conformou-se ao papel de coadjuvante do PMDB. Michel Temer entende que assumir a presidência lhe colocará em uma posição inatingível em relação à Lava-Jato, dado o apoio popular que virá com o impeachment. Já Renan Calheiros preferiria não arriscar um passo como esse.

O impeachment vai tirar da frente do presidente do Senado três grandes anteparos que têm permitido o adiamento de seu destino até o momento: Dilma, Lula e Eduardo Cunha. E se Michel Temer assumir a presidência e conseguir se manter a salvo da Lava-Jato, nada impede que saia distribuindo convites de camarote para o espetáculo de exclusão de Renan do jogo pela operação. Daí a proposta de parlamentarismo semi-alguma coisa formulada por Renan. Serve para amarrar Temer e não Dilma. É uma espécie de seguro que Renan quer ter contra Temer. Só que Temer faz figa com as mãos às costas quando diz aceitar essa condição.

Tanto em política quanto em economia, fundo de poço só se conhece depois que já se saiu dele. Dentro da grande divisão do sistema político hoje, não se trata de discutir quem tem a melhor leitura da situação atual, Renan Calheiros ou Michel Temer. O importante é ter clareza dos interesses envolvidos em cada um dos planos de ação que estão na mesa. E avaliar não apenas sua exequibilidade e suas consequências, mas também o seu significado para as instituições democráticas.

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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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