Os visitantes brasileiros dificilmente prestam atenção nas calçadas de Buenos Aires, nos escassos dias que dispõem, em geral, para percorrer as ruas da capital argentina. Talvez poucos tenham reparado em pequenas placas fixadas no chão, em ladrilhos, com o nome de uma pessoa, a data de seu nascimento e a de seu desaparecimento, naquele local. Placas como essas estão em toda cidade.
Em frente ao Colégio Figueroa Alcorta, um estabelecimento público de ensino médio na avenida Santa Fé, no bairro de Palermo, se acumulam várias plaquinhas. São 14 nomes, que sumiram em um ano e meio, entre 1976 e 1977. É uma média de quase um por mês. Pela idade das vítimas, todos estudantes.
Cenas assim ajudam a tecer um fenômeno que transcende o julgamento de criminosos que violaram os direitos humanos usando o aparelho do Estado: de certo modo, trata-se da apropriação de uma narrativa, de um modo de contar as coisas, o que só se torna possível depois da realização de investigações que não se limitam ao Judiciário.
A releitura do passado está longe de ser uma questão menor. Foi graças a mobilizações proporcionadas por comissões de investigações que hoje existe uma condenação quase universal na sociedade argentina ao último regime militar.
Maior responsável pelo morticínio, o ex-presidente Jorge Rafael Videla concedeu uma recente entrevista a um jornal espanhol, do cárcere perpétuo em que cumpre pena. Em uma sociedade polarizada como a da Argentina, seus ataques ao governo foram recebidos com repulsa por todos os setores políticos. Em pelo menos um ponto, contudo, Videla está certo: nem sempre foi assim.
Nas duas décadas de democracia, houve repressores que chegaram a governos locais, como o general Antonio Bussi em Tucumán, e líderes dos "carapintadas" - militares que se amotinaram contra os processos judiciais, como Aldo Rico - que se tornaram políticos profissionais. Houve até um dos comandantes da repressão, o almirante Emilio Massera, que tentou candidatar-se à Presidência, em meio à confusa abertura argentina em 1983.
A chave para a virada foi o controle do relato dos fatos. Os militares do antigo regime foram marchando para o degredo da história de maneira paulatina. Se não fosse a exposição pública de seus desmandos, as punições que sofreram e sofrem pouco valeriam no contexto social: Videla e sua turma poderiam ser vistos como mártires do revanchismo. Do mesmo modo, as vítimas, muitas delas ligadas a movimentos de expressão terrorista, como o dos Montoneros, ganharam outra expressão histórica. Alguns filhos de desaparecidos estão hoje no Congresso argentino, tendo ingressado na política exatamente por esta condição.
O exemplo argentino foi um caso emblemático que marcou a transição nos demais países da América Latina de um regime militar para um civil, exatamente por ser extremo. Apavorou segmentos da elite latino-americana da mesma forma que os escravos haitianos no fim do século 18, quando trucidaram seus senhores. De maneira diluída, entretanto, uma revisão está em curso em praticamente todos os países do continente. Exceção à Venezuela, Colômbia e México, sendo que em nenhum destes três existiu ditadura plena nos últimos cinquenta anos, há ou houve "comissões da verdade" em todos os demais países. Da Guatemala ao Uruguai, passando por Chile e Haiti.
É incorreto dizer que não existiu coisa equivalente no Brasil antes de Dilma Rousseff. Seria desmerecer o trabalho desenvolvido em 1985 pela Arquidiocese de São Paulo e o esforço de reparação feito em 1995 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Dilma não se tornou presidente pelo fato de ter integrado um movimento armado, sido torturada e passado anos em um presídio, mas não se pode dizer que chegou à Presidência apesar disso. Seu passado foi exibido em sua campanha política e só se tornou um foco de campanha negativa nos subterrâneos da internet. O contrário sim, seria um impeditivo: alguém que tenha sido colaborador do DOI-Codi, por exemplo, não tem muitas perspectivas de êxito eleitoral. De certo modo, a história brasileira já é contada pela ótica de quem foi derrotado no embate militar dos anos 70.
Ainda que a Lei de Anistia de 1979 não seja tocada - e certamente não será, depois do aval que recebeu do Supremo Tribunal Federal, no ano passado - a simples colocação do tema em pauta vai, de forma gradual, construindo uma nova versão sobre o processo do fim do regime militar brasileiro. Esmaece a visão positiva sobre o esforço de moderados do governo e da oposição de então na construção de um acordo em que os governantes abriram mão do futuro para que os oposicionistas colocassem uma pedra no passado. Tende a se sedimentar uma outra escrita dos fatos ocorridos nos anos 1970 e 1980, em que a conciliação entre extremos perde o protagonismo e em que se projeta a pergunta: houve acordo?
Se o critério criminal, e não político, fosse o norteador da questão, talvez existisse espaço para muitas comissões de investigação no país. As "comissões da verdade" podem existir em qualquer lugar onde houve graves violações de direitos humanos patrocinadas, com a conivência dos agentes do Estado ou simplesmente não esclarecidas pelo poder público.
Na lista de ONGs como a Anistia Internacional figuram até países como os Estados Unidos, onde uma comissão da verdade existiu para investigar crimes de base racista provocados pela Ku Klux Klan. No Peru, sem grande sucesso, houve comissões para esclarecer um massacre em presídios em 1986 e uma chacina de jornalistas em 1983. Um breve exame do saldo de condenações e esclarecimento dos assassinatos no campo brasileiro nas últimas décadas por si só traria uma resposta.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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