Em 1990, o cientista político Francisco Weffort publicou um artigo cujo titulo manifestava uma avaliação terrível sobre o continente que convencionalmente é identificado como América Latina: “A América errada”. Era um o texto contundente e suas palavras finais anunciavam um temerário juízo a respeito da situação da América Latina naquela conjuntura que abria a última década do século XX. De acordo com Weffort, para os latino-americanos, pior do que a dependência — que caracterizara toda a sua história — seria o abandono, e, por esse último se deveria entender a “lamentável condição de ‘pueblos olvidados’ que sempre os horrorizou” [1].
O argumento tinha conexão com os tempos triunfantes da atual globalização que impunha sem reservas os termos pelos quais seria possível integrar-se a ela: mais mercado menos Estado e sobretudo menos política; mais empresa menos direitos, mais individuo menos “sociedade organizada”, predomínio integral do mundo financeiro sobre o da produção, e assim por diante. Em paralelo ocorria uma mudança profunda do padrão tecnológico na produção e circulação econômica, não verificada desde os primórdios do industrialismo moderno. Emergia então o que passou a ser conhecido como “economia da informação”, um dos pilares da chamada “sociedade do conhecimento”. Um mundo em profunda transformação e mais uma vez, a América de colonização ibérica teria que se orientar no sentido de um novo aggiornamento ao seu novo andamento. Se aquela “América errada” não buscasse alterar a sua forma ser estaria inapelavelmente condenada.
Como das outras vezes, um enorme desafio colocava-se à inteligência e à imaginação política dos latino-americanos. Prescrevia-se, para o caso, a formação de blocos econômicos para enfrentar essa nova situação. O Mercosul (Mercado Comum do Sul), de 1991, uma iniciativa inovadora que nasce em meados da década de 1980 num contexto de transição à democracia no Cone Sul, apresentava-se como vital ao continente mas se mostrava pouco crível para ser assumido como um projeto que pudesse, por meio da unificação, alterar profundamente os fundamentos estruturais das sociedades latino-americanas e lhe fornecer uma via de passagem para os circuitos da globalização. O estabelecimento do Nafta (North American Free Trade Agreement), em 1994, indicava direção semelhante mas, diante dos problemas ideológicos envolvidos em razão da presença norte-americana, foi incapaz de produzir um consenso positivo na opinião pública latino-americana.
O desafio era real e não se mostrava nem simples nem fácil. Que referências mobilizar para superar o que dificultava a atualização da América Latina a um mundo que se transformava rapidamente? Que caminhos percorrer e onde aportar? É certo que na sua história, a América Latina sempre foi pensada a partir de diversos paradigmas. Como se sabe, o primeiro deles foi o europeu, visto como um modelo a ser atingido e também como aquele responsável pelos históricos problemas que assolam a região. Por essa razão, a Europa foi invariavelmente uma referência contestada, emergindo daí, em algumas épocas e ambientes, uma persistente atitude antieuropeia. Desde o século XIX, o paradigma europeu ganhou a companhia e a concorrência do norte-americano. Mas foi após a II Guerra Mundial que o modelo norte-americano passou a exercer influência e mesmo um poder expressivo nas sociedades latino-americanas, cumprindo até com maior rigor do que o modelo europeu a sina de adesão calorosa e repugnante rechaço. Mais recentemente é o modelo oriental que alcançou um inaudito prestígio, primeiramente como referência em relação à dimensão organizativa do mundo produtivo e empresarial. Depois será a China o grande exemplo a ser quotidianamente mobilizado diante dos dilemas de inserção competitiva enfrentados pelas economias latino-americanas. Mesmo assim, a sua capacidade de assimilação cultural ainda é reconhecidamente limitada.
Um segundo aspecto importante é o reconhecimento de que as sociedades latino-americanas construíram-se historicamente a partir da tradutibilidade de valores e paradigmas da modernidade ocidental. Uma tradutibilidade que viria a condicionar sua ocidentalização e estabelecer os referenciais em torno dos quais as estratégias políticas seriam projetadas e colocadas em prática por diversos setores sociais. Na América Latina, como afirmou José Aricó, a ocidentalização é “o reflexo do desenvolvimento internacional, que manda à periferia suas correntes ideológicas, nascidas sobre a base do desenvolvimento produtivo dos países mais avançados” [2]. Mediante tais processos, não isentos de conflituosidade, organizou-se na América Latina, especialmente durante os séculos XIX e XX, uma sociedade cada vez mais complexa que sempre se compreendeu como parte dessa história mais ampla.
Ao final do século XX, as exigências da globalização demandariam mais uma vez que os latino-americanos mobilizassem a experiência cultural da tradutibilidade em um contexto novo. Além da dura luta contra os regimes autoritários que vicejavam no continente desde meados da década de 1960 e do passivo social que a economia da chamada “década perdida” (1980) havia deixado como seu elemento mais dramático, a questão que se colocava era a de empreender um profundo repensar sobre a América Latina para saber, enfim, a que herança se deveria renunciar, quais preservar e especialmente quais deveriam ser renovadas.
Seria preciso antes de tudo superar visões dogmáticas a respeito do continente. O contexto era novo e seria importante, em primeiro lugar, vencer as velhas orientações de ruptura com o colonialismo ou com a dependência que faziam parte de uma forma de compreender a América Latina própria das décadas de 1950 e 1960. Não fazia mais sentido ver os problemas latino-americanos como decorrentes exclusivamente da subordinação externa, cujo resultado antitético seria, por meio de uma radicalização nacionalista, desvincular a América Latina da própria modernidade. Por outro lado, em razão do predomínio mundial da cultura política de matriz anglo-saxônica, liberal e individualista, a sedução por uma condenação integral do passado latino-americano, visto como estatista e patrimonialista, recolocava em sentido inverso o tema da ruptura. Nessa leitura, a América Latina não era mais do que a consagração de um atraso integral, sem nenhuma condição para acompanhar os passos da nova modernização pós-industrial.
Essas orientações de ruptura ficaram, por assim dizer, a meio caminho. Nem a perspectiva de ruptura protagonizada pela Revolução Cubana conseguiu se generalizar nem o “programa” neoliberal — primeiramente imposto ao Chile depois da derrubada de Allende e que perduraria, com modificações, nos 20 anos de governos da Concertación — tornaram-se vetores integralmente assimiláveis para o conjunto do continente. É certo que ambas permanecem latentes e às vezes são mobilizadas conforme a avaliação que os atores políticos mais inclinados a um ou outro polo fazem da correlação de forças interna e externa. O fenômeno Hugo Chávez na Venezuela não deixa de ser uma das expressões dessa situação, assim como, inversamente, a política atual do governo mexicano, no mesmo sentido do que provavelmente parece indicar o retorno da direita ao governo do Chile depois da vitória eleitoral de Sebastián Piñera, no final de 2009.
Em segundo lugar, haveria que se fazer também um inventário da trajetória de construção da modernidade latino-americana cujo maior déficit continua a ser a fratura entre democracia política e democracia social. Apenas a título de exemplo, pode-se dizer que nenhum dos grandes paises latino-americanos, Argentina, Brasil e México, conseguiu encontrar a justa relação entre política democrática e sociedade democrática, isto é, a “vigência de um sistema de governo baseado em ampla representação e exercido em ambiente de liberdade” com uma sociedade na qual “as desigualdades sociais são reduzidas e em que há uma ampla mobilidade social” [3]. Com dificuldades históricas para estabelecer no país uma política democrática, a Argentina conseguiu organizar uma sociedade democrática que ainda se vê ameaçada depois da crise que a devastou no inicio do século. O México chegou tardiamente à política democrática e, da mesma forma que o Brasil, avança na sua construção, ainda que ambos padeçam a mesma desigualdade social tão comum ao continente.
Em meio ao turbilhão de orientações entrecruzadas, acrescida pela vertigem derivada da emergência e do prolongamento da chamada crise dos grandes paradigmas, a América Latina foi impingida a buscar recursos conceituais e analíticos para compreender os traços essenciais que a caracterizam bem como enfrentar os bloqueios e limites que se acumularam na sua trajetória de construção da sua modernidade. Tratava-se de extrair dessa busca uma reorientação que comportasse, ao mesmo tempo, realismo, capacidade de ação e visão de futuro com vistas a estabelecer para a América Latina um lugar no mundo.
É nesse sentido que se desautoriza, para a América Latina dos últimos anos, o diagnóstico da paralisia. Em todos os planos da vida social verificam-se mudanças significativas. Os desafios que o combate ao autoritarismo colocou acabaram por promover uma virada duradoura e profunda que teria repercussões generalizadas, tanto políticas como simbólicas, particularmente dentre os setores de pensamento democrático e progressista. Do fato e da sedução pela revolução, tão poderosa nas décadas de 1960 e 1970, passou-se à tematização da democracia, em suas diversas dimensões, ainda que no início ela fosse percebida mais como uma esperança difusa do que como uma realidade política complexa. A partir dessa clivagem, pela primeira vez na história do continente, a democracia ganha centralidade, superando o tratamento instrumental que lhe foi historicamente dedicado tanto à direita quanto à esquerda. Pelo menos duas conseqüências podem ser extraídas dessa mudança. Em primeiro lugar, foi possível superar a muralha que existia entre as temáticas do socialismo e do liberalismo político, possibilitando um dialogo produtivo e inovador entre esses dois campos, ainda que alguns setores políticos resistam a essa aproximação e outros a rechacem. Ao nosso ver, ambos se equivocam ao identificarem liberalismo político com oligarquias e ao desvincularem socialismo de qualquer relação com instituições políticas de caráter liberal-democrático. Por essa razão, é importante afirmar que o nexo entre liberalismo e socialismo produziu não apenas a renovação do pensamento político latino-americano como foi fundamental para a formação de alianças políticas de centro-esquerda antes e depois da vitória sobre os regimes autoritários. Em segundo lugar e como parte do mesmo processo, o fracasso das guerrilhas das décadas de 1960 e 1970 suscitou a abertura de uma reflexão crítica sobre a Revolução Cubana, identificada como um paradigma consagrado. Mediante essa reflexão, o imaginário da revolução perdeu energia e vitalidade, o que vem possibilitando uma via de superação frente a décadas de atraso da esquerda latino-americana, abrindo-se a perspectiva de se projetar para o continente uma esquerda com vocação de governo, identificada como democrática, moderna e reformista.
Mas é sobretudo a ebulição, o movimento e as alternâncias de cenários que marcam esse período recente da história política latino-americana. Essas sociedades em “movimento democrático” superaram os regimes autoritários e investiram no aprofundamento da sua democratização. Pode-se afirmar que foi o movimento democrático mais geral que abriu a possibilidade para se avançar em direção a uma cidadania mais alargada, com “velhos” e novos direitos se estabelecendo no âmbito do Estado e da sociedade civil. O caso brasileiro apresenta a mais expressiva conquista nesse sentido em razão da promulgação da Constituição de 1988, considerada a mais democrática de toda a história do país. A democracia política ensejou e deu a orientação precisa para que mesmo atores étnicos e culturais historicamente excluídos viessem à luz em alguns paises, por meio de movimentos sociais vigorosos, e postulassem uma outra organização estatal e civil, reconfigurando ou mesmo reinventando a Nação, como no recente caso boliviano. Se a Bolívia caminhará rumo a um “socialismo comunitário dos movimentos sociais”, de duvidosa inspiração gramsciana, ao cancelar as fronteiras entre sociedade política e sociedade civil, essa é uma questão a ser acompanhada com toda atenção. Contrariu sensu, países que não viveram essa dinâmica, nos quais sobreveio a falência da classe política nacional, afogada na corrupção, emergiram situações dicotômicas nas quais a política é vista como soma zero, com base na lógica amigo/inimigo. Não sem razão, o espectro de um novo autoritarismo volta a rondar estes países.
No seu conjunto, a conquista da democracia política parece ser efetivamente o mais extraordinário e histórico movimento que as sociedades latino-americanas realizaram nessa quadra. Como afirmou o cientista político norte-americano, Peter H. Smith, as massas latino-americanas “não estão pegando em armas, fugindo para as montanhas, colocando bombas ou participando de conspirações terroristas. Estão votando. Apesar do amplo ceticismo, não rechaçam a política democrática. Pelo contrário, empregam os instrumentos mais básicos da democracia para expressar suas demandas e buscar uma reforma de amplo alcance” [4]. Em seu dialogo com o mundo, os latino-americanos sabem que a esse movimento juntam-se novas e antigas questões como os temas da integração continental bem como a manutenção da estabilidade econômica aliada a uma perspectiva de desenvolvimento sustentável.
É parte da vocação latino-americana a ideia de que pensar para onde se caminha indica também a forma de como ela se vê e toma consciência do que é. Talvez essa América não possa mais ser vista como uma “América errada”. Frente a frente consigo mesma, a América Latina descobriu e assimilou, pela primeira vez em sua história, o fato de que a democracia pode e deve ser um elemento intrínseco à modernidade que a constituiu e que historicamente se projetou como um destino a ser perseguido. Na América Latina, a democracia não é, portanto, um fato importado. O desafio da sua construção ainda orienta o seu “movimento” e parece ser cada vez mais forte o reconhecimento de que não poderá haver sociedade democrática sem política democrática.
Depois de tanto andar é aqui que chegamos e nada indica que essa situação não seja irreversível. Por isso, resta a confirmação, hodierna e futura, de que aquilo que se construiu já pode ser catalogado não somente como um patrimônio de idéias e convicções compartilhadas mas também como uma realidade efetiva.
Alberto Aggio é professor da Faculdade de Ciências Humanas e Socais da Unesp, Câmpus de Franca. Esta conferência foi proferida pelo canal on-line do Centro de Estudios Brasileños da Universidade de Salamanca em 17/02/2012.
Notas
[1] WEFFORT, Francisco. “A América errada”. Lua Nova, São Paulo, n. 21, 1990, p. 5-40. Francisco Weffort é professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) e seu secretário geral durante a década de 1980. Afastou-se do partido e, depois de 1994, após a vitória de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, Partido da Social-Democracia Brasileira) nas eleições presidenciais, foi Ministro da Cultura por dois mandatos consecutivos.
[2] ARICÓ, J. La cola del diablo. Caracas: Nueva Sociedad, 1988, p. 99. Ao reproduzir quase integralmente o texto gramciano, Aricó está buscando aqui dar viabilidade analítica à noção de revolução passiva para se pensar a história e a política da América Latina.
[3] CARVALHO, José Murilo. “Do patético ao tragicômico”. Folha de S. Paulo (Caderno Mais), 11 ago. 2002.
[4] SMITH, P. H. La democracia en América Latina. Madrid: Marcial Pons, 2009, p. 17.
FONTE: GRAMSCI E O BRASIL.
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