George Kennan,
brilhante intelectual e diplomata norte-americano, não tinha o extraordinário
sentido de marketing de Jim O"Neill, o economista da Goldman Sachs que
cunhou o acrônimo Bric para designar os mesmos quatro países que Kennan havia
chamado, quase uma década antes, de "países-monstros" (monster
countries) do mundo: China, Índia, Rússia e Brasil - além dos EUA.
Pensando mais no seu
país, Kennan notou que países de grandes território, população e dimensão
econômica teriam uma característica comum, que chamou de hubris of inordinate
size e definiu como "uma certa falta de modéstia na autoimagem nacional do
grande Estado - um sentimento de que o papel do país no mundo deve ser o
equivalente a seu tamanho, com a consequente tendência relativa a presunçosas
pretensões e ambições... Em geral, o país de grande dimensão tem uma
vulnerabilidade a sonhos de poder e glória para os quais são menos facilmente
inclinados os países menores".
Em texto para
discussão publicado dois anos e meio atrás procurei avaliar se seria possível
extrair algo relevante para o Brasil da experiência dos três outros Brics na
definição de seus respectivos interesses nacionais. Três daquelas
"lições" me parecem ainda mais válidas hoje.
A primeira é que
China, Índia e Rússia têm objetivos de longo prazo em termos de seus interesses
nacionais e, portanto, as políticas e ações domésticas e internacionais pelas
quais buscam esses objetivos devem ser políticas de Estado, e não do governo de
turno (como a busca de segurança alimentar, energética e militar). Políticas
que não dependem de pessoas específicas, de culto à personalidade do grande
líder, do grande timoneiro, do grande guia e genial mentor.
A segunda reside na
percepção de que, na área internacional, a apropriada execução das políticas de
Estado requer uma cuidadosa e realista avaliação do que os chineses chamam de
comprehensive national power, que é constituído pelos recursos econômicos,
políticos, militares, diplomáticos, científico/tecnológicos e culturais de que
dispõe o país. Avaliações irrealistas desses recursos podem levar a patéticas
aventuras e a discursos marcados pela dissonância cognitiva entre o querer e o
poder.
A terceira está
relacionada ao fato de que os três países-monstros pensam e exercitam a busca
de seus interesses nacionais em termos de círculos concêntricos, que vão dos
problemas domésticos ao círculo mais amplo dos problemas globais, passando
pelos círculos intermediários, que os analistas desses países chamam de
"vizinhança imediata" e "vizinhança estendida". China,
Índia e Rússia e suas lideranças sabem que o peso, a influência, o prestígio e
a força da voz de cada um no mundo é função de sua capacidade de equacionar
problemas domésticos e do reconhecimento de sua gravitas por parte de suas
"vizinhanças".
Nesse contexto, e
indo além dos Brics, cabe perguntar: regimes democráticos têm mais ou menos
dificuldades para definir com clareza seus interesses nacionais? Em livro
recente, o decano dos estudos americanos sobre poder (hard and soft) nas
relações internacionais, Joseph S. Nye Jr., escreve: "Numa democracia, o
interesse nacional é simplesmente aquilo que os cidadãos, após deliberação
apropriada, afirmam que é... Lideranças políticas e especialistas podem apontar
para os custos de indulgência em certos valores, mas se um público informado
discorda, os especialistas não podem negar a legitimidade destas
opiniões".
É claro que o
fundamental dessa visão é a expressão "após deliberação apropriada por
parte de um público informado". O que nem sempre ocorre em algumas
democracias. E, se mesmo após tais deliberações por parte de um público
informado, emerge um país profundamente dividido ou uma posição que não seja
muito mais que a expressão de um vago desejo?
A expressão de
desejos coletivos não se traduz, naturalmente, em políticas que transformem os
desejos em realidade. Como escreveu Paul Volcker em seu relatório para a ONU
(Boas Intenções Corrompidas: o Escândalo do Programa Petróleo por Alimentos):
"Após mais de 50 anos de experiência, tive inúmeras oportunidades de
observar em primeira mão a frustração das boas intenções: debates infindáveis,
defesa de interesses muito especiais, falta de visão ampla e oportunidades
perdidas entre o impasse político e a inépcia administrativa".
A propósito, quero
concluir lembrando o moto constitucional de um grande país, o Canadá, que pode
ser visto como síntese de seu interesse nacional: "Peace, order and good
government". Trivial e genérico como possa parecer a alguns, é seguramente
uma tríade muito mais relevante, para qualquer país, do que "conflito,
desordem e mau governo", infelizmente, uma tríade muito mais disseminada
neste nosso mundo de quase 200 países legalmente soberanos. Cada um à sua
maneira, e com seus conflitos de interesses internos, tentando situar onde
estaria seu "interesse nacional" em meio a este espesso nevoeiro da
segunda década do século 21.
Pedro S. Malan -
economista; foi ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso
Fonte: O Estado de S. Paulo
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