Jornalista espanhol lança livro que ilumina a vida e o governo do presidente chileno que virou um mito político
Por Leonardo Cazes
Os 40 anos do golpe de Estado contra o presidente chileno Salvador Allende, ocorrido em 11 de setembro de 1973, marcam também a chegada de uma nova biografia sobre um dos maiores mitos políticos da América Latina. Em “Allende. La Biografía” (Ediciones B), que será lançado no Chile e na Espanha na quarta-feira, o jornalista e historiador espanhol Mario Amorós elege como objetivo principal desmontar a figura mítica criada a partir do suicídio do presidente no Palácio La Moneda. Amorós, que há 20 anos estuda a história chilena, acredita que isso ofuscou o homem Allende e a experiência dos seus 34 meses no poder, a primeira tentativa de transição democrática ao socialismo no mundo.
No livro de quase 700 páginas, mais de 400 são dedicadas ao período compreendido entre a vitória da Unidade Popular (UP) — frente que reunia sete partidos de esquerda, como o Partido Comunista, o Partido Socialista (de Allende) e o Partido Radical — nas eleições de setembro de 1970 e o golpe de 1973, que deu início a 17 anos de ditadura. Na pesquisa, o biógrafo descobriu 30 documentos inéditos, entre eles papeis que detalham a relação entre o Chile e os Estados Unidos no período.
— Com sua morte em La Moneda, Allende se tornou um mito político. Nos últimos 40 anos sua memória se converteu ao 11 de setembro. Ele tem uma trajetória política e humana que não pode ser descartada. O mesmo aconteceu com os três anos de governo da Unidade Popular, caíram no esquecimento. Ficou-se debatendo se o presidente foi ou não morto pelos militares. Agora, a maioria dos países sul-americanos possui governos de esquerda que se inspiram na via chilena, na construção de um socialismo democrático. E há lições a serem aprendidas — afirma Amorós, por telefone, de Madri.
Ascensão progressiva
Nascido em Valparaíso, em 1908, Allende se formou em Medicina na Universidade do Chile em 1933, mesmo ano em que ajudou a criar uma seção do Partido Socialista na cidade. Nos trinta anos seguintes, foi eleito deputado e senador diversas vezes e ainda ocupou o cargo de ministro da Saúde durante a curta presidência de Pedro Cerda (1938-1941). Neste período, iniciou o que seria um dos primeiros sistemas públicos de saúde do continente.
Allende foi candidato à presidência três vezes antes de vencer, sempre à frente de coalizões de esquerda. Em 1952, obteve 5,5% dos votos. Em 1958, chegou a 28,9% e perdeu a eleição para Jorge Alessandri, do conservador Partido Nacional, por menos de 30 mil votos, mesmo sendo o mais votado pelo eleitorado masculino. Em 1964, o socialista teve 38,9% dos votos contra 56,1% do democrata-cristão Eduardo Frei.
O governo Frei foi abertamente reformista e começou muitas políticas que seriam aprofundadas por Allende, como a reforma agrária e a nacionalização do cobre. A radicalização política provocada por essas medidas influenciou decisivamente as eleições de 1970, em que houve uma polarização entre as candidaturas da esquerda e da direita: Allende recebeu 36,2% dos votos contra 34,9% do ex-presidente Alessandri.
A força da UP veio também do surgimento de dezenas de sindicatos nas cidades e no campo entre 1964 e 1970. Nesse período, o número de trabalhadores sindicalizados passou de 10,3% para 18,2% da população total do país. A vitória, contudo, nunca foi dada com certa. Amorós conta que , em entrevistas, muitos ex-membros da coalizão de esquerda admitiram a surpresa com o resultado. Chegara a hora de Allende colocar em prática a via chilena para o socialismo.
— Ele estava convencido de que no Chile era possível avançar de uma economia capitalista e um sistema político burguês para uma nova sociedade socialista democraticamente. Foi amigo de Fidel Castro, conheceu a China e a União Soviética em 1954. Mas Allende sempre acreditou que no Chile as circunstâncias eram outras. Mesmo quando parte da esquerda chilena defendia que se armasse o povo para defender o governo, ele descartou essa possibilidade e defendeu que o Chile seguiria a via democrática para o socialismo — diz o biógrafo.
O plano da Unidade Popular era dividido em duas partes: primeiro, a adoção de uma reforma agrária que acabasse com todos os latifúndios do país e a completa nacionalização do cobre. Ao contrário do governo Frei, nos anos da UP a nacionalização foi feita não pela compra de ações das empresas, e sim pelo pagamento de indenizações calculadas pelo Estado. Com a quebra dos grandes monopólios nacionais e estrangeiros estariam dadas as condições para um planejamento descentralizado e democrático da economia, comandado por organizações de base.
Internamente, a decisão sobre o cobre teve amplo apoio popular. Já a reforma agrária indispôs o governo Allende com os proprietários de terra e com o Movimento de Esquerda Revolucionário (MIR). O MIR promovia a ocupação de fazendas e cobrava uma posição mais radical. Contudo, as maiores dificuldades foram externas. Na época, o Chile era o país que mais recebia ajuda externa por habitante na América Latina. Ao mesmo tempo, a nacionalização do minério afetou duas empresas americanas, Anaconda e Kennecott.
A resposta não demorou. Um memorando da Agência de Segurança Nacional americana (NSA, em inglês), consultado pelo GLOBO, detalha que o presidente Richard Nixon decidiu, em novembro de 1970, que os Estados Unidos deveriam “maximizar as pressões para reduzir liberdade de ação do governo e sua estabilização”. O documento apontava uma série de medidas a serem adotadas, tais como: fim da assistência financeira ao país e pressão máxima sobre instituições financeiras internacionais para limitar crédito ou qualquer tipo de assistência ao Chile. Era recomendado também o estreitamento de laços com países “amigos” na região, como Brasil e Argentina.
Confiança nos militares
Paralelamente, Pedro Vuskovic, ministro da economia chileno, determinou no início do mandato o congelamento de preços, como forma de combate à alta inflação, e aumentou os salários entre 30% e 40%. Em 1971 as medidas obtiveram resultados favoráveis. No ano seguinte, entretanto, a queda do preço do cobre, principal produto de exportação, e as dificuldades para importar bens de consumo se chocaram com o aumento da demanda. O país enfrentou uma crise de abastecimento, piorada pela especulação com os estoques feita por comerciantes. Em outubro de 1972, quando avançavam as nacionalizações, houve uma greve geral patronal.
Politicamente a situação era delicada. Allende era pressionado pela esquerda e pela direita para mudar suas políticas. Em minoria no Congresso, viu a oposição aprovar uma reforma constitucional que lhe retirava vários poderes e repassava-os ao parlamento. Apesar da instabilidade, o presidente se fiava em uma suposta tradição democrática das Forças Armadas, diz Amorós. Em julho de 1971, o general Augusto Pinochet, futuro ditador, chegou a afirmar que “golpes não ocorrem no Chile”.
Para o biógrafo, este foi o seu principal erro, pois a história recente do Chile mostrava o contrário. Em 1969, militares comandados pelo general Roberto Viaux se amotinaram contra o presidente Eduardo Frei. Em novembro do ano seguinte, o mesmo Viaux foi condenado pelo atentado contra o comandante do Exército, general René Schneider, dois dias antes de o Congresso ratificar a vitória de Allende.
— A relação entre as Forças Armadas do Chile e dos Estados Unidos era muito próxima, com dependência logística e financeira. Um grande número de oficiais chilenos frequentou a Escola das Américas no Panamá. O presidente confiou na lealdade dos principais generais e particularmente de Pinochet. Tanto que o golpe pegou desarmado o governo e a esquerda — argumenta Amorós.
Fonte: Prosa / O Globo
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