- O Estado de S. Paulo
O parlamentarismo no País não é novo. Durante o Império, vigorou no Segundo Reinado, entre 1847 e 1889. Foi um período de estabilidade política, que acabou com a proclamação da República, em 1889. A segunda experiência parlamentar foi iniciada em 1961, com a aprovação da emenda parlamentarista destinada a tornar palatável a militares e oposição a ascensão de João Goulart à Presidência. Um ano depois, e amplamente sabotado pelo presidente da República, o parlamentarismo foi derrubado por um plebiscito. Adiante, em março de 1964, os militares derrubaram Goulart com o apoio de políticos e de segmentos expressivos do eleitorado. Agora, em meio a grave crise política, vivemos algo que se assemelha a um regime parlamentarista.
Dois pontos têm sobressaído no parlamentarismo brasileiro: pode ser sabotado pelo chefe do Executivo e termina em ruptura. Ambas as experiências parlamentaristas resultaram em golpes: a proclamação da República, que foi uma quartelada, e o golpe militar de 1964. Mas o flerte com o parlamentarismo não acabou. A Constituição de 1988 instituiu a possibilidade de um plebiscito pelo qual o eleitorado pôde escolher entre o presidencialismo, a monarquia e o parlamentarismo. Realizado em 1992, a preferência foi pelo presidencialismo, com quase 70% dos votos. O Congresso e a classe política, como sempre, não tinham prestígio suficiente entre a população para alavancar a alternativa parlamentarista.
O Brasil de hoje está, de novo, flertando com o parlamentarismo. Porém, de forma curiosamente ortodoxa e dentro da letra constitucional. Na prática, o Congresso passou a mostrar sua musculatura e o eixo do poder se deslocou do Executivo para o prédio ao lado, o Congresso Nacional. Sem condições de diálogo político consistente e com a popularidade no chão, o governo já não comanda o espetáculo. Muitos acreditam que o País está sendo comandado, de fato, pela dupla Renan Calheiros-Eduardo Cunha, presidentes, respectivamente, do Senado e da Câmara, e que Michel Temer, vice-presidente da República, seria o coordenador político do novo regime junto ao enfraquecido Poder Executivo. O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, cuja leitura política é mais sofisticada do que a média do governo, já percebeu que sem um entendimento com o PMDB e seus três próceres não conseguirá avançar com o ajuste fiscal, além do risco de levar bola nas costas.
Vivemos uma nova realidade institucional pelo simples fato de que o Congresso entendeu que tem uma ampla reserva de poderes que nunca foi utilizada de forma consciente e consistente. Medidas provisórias podem ser devolvidas sem apreciação ou mesmo rejeitadas em plenário. Ou, ainda, podem ser enxertadas com assuntos de interesse dos parlamentares. Os eventuais vetos presidenciais podem ser derrubados, já que o Congresso voltou a pô-los em votação. Tudo, como disse, dentro da letra constitucional. O exercício de maior protagonismo parlamentar é uma vocação - até então abandonada - da nossa Constituição.
Não é só. Com o orçamento impositivo as emendas orçamentárias dos parlamentares precisam ser executadas, sob pena de crime de responsabilidade da Presidência da República. Para agravar o isolamento do Executivo, a agenda de votações já não é decidida na Casa Civil, é resultante de um entendimento liderado pelo Congresso. Decretos legislativos podem anular decretos do Executivo. E, pasmem, ministros podem ser "demitidos" em plenário, caso de Cid Gomes, da Educação.
Uma vez que o governo perdeu a capacidade de articular sua maioria, uma nova maioria está sendo formada, à revelia do Palácio do Planalto e sob a liderança do Congresso. Essa maioria tem como balizadores os interesses da política das maiorias parlamentares. O sentimento autonomista do Congresso não se limita a temas de interesse específico do mundo político, como o aumento dos recursos dos fundos partidários e a reforma política. Abrange também o ajuste fiscal - nesse caso, a mensagem enviada ao governo é a de que o Poder Executivo, além de pedir o sacrifício de todos, deveria dar o exemplo cortando na própria carne. É a redefinição do pacto federativo.
Qual o desdobramento desta nova circunstância institucional? A pergunta estende-se a outras incertezas e indagações. O regime semiparlamentarista vai sobreviver e se fortalecer? A presidente Dilma Rousseff vai recuperar a liderança? Os desdobramentos do petrolão podem reequilibrar a balança institucional? As manifestações de rua podem derrubar o governo? Evidentemente, num momento de forte nevoeiro político, as previsões são temerárias. Mas alguns indícios são claros. O primeiro é o fato de que o sentimento autonomista do Congresso deve prosseguir. Não teremos um Congresso dócil e domesticado como antes, ainda que a Presidência recupere a popularidade. As bases do entendimento entre os Poderes mudaram e devem seguir predominando no futuro imediato.
O petrolão, ao contrário de paralisar o Congresso, estimula o maior protagonismo e o fortalecimento de seu espírito de corpo.
As razões para que a independência do Congresso se revele como um sistema "semiparlamentarista" não são novas. Primeiro, estão presentes na Constituição. Porém, no campo prático, foram cevadas ao longo dos últimos quatro anos em razão de uma interpretação canhestra do presidencialismo de coalizão e estimuladas pela inaptidão para o diálogo político. Tem faltado inteligência política, e não é de hoje. O Congresso demorou a reagir à tradicional hegemonia do Executivo, mas compreendeu que tem poderes que o põem em situação de igualdade e até mesmo de superioridade ante o Executivo. Não se trata de uma mudança circunstancial. Esperamos, apenas, que ela não termine em ruptura, como nas experiências anteriores, e, ao contrário, possa ser o caminho para uma maior estabilidade política e um maior equilíbrio entre os Poderes.
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*Murillo de Aragão é consultor e advogado, mestre em Ciência Política, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e autor do livro 'Reforma Política - o debate inadiável' (Civilização Brasileira, 2014)
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