segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Marcos Nobre - O essencial e o acessório

Valor Econômico

• A crise exige cabeça fria e foco no essencial

Na última semana, a irresponsabilidade política se alastrou até onde a vista alcança. Tomou por completo os dois partidos que se revezaram nos últimos 20 anos no cargo de síndico do condomínio pemedebista, PSDB e PT. Tomou conta mesmo daquele que pretendia até então ocupar a posição de baluarte da serenidade e do equilíbrio, o vice-presidente Michel Temer.

Jogaram gasolina no incêndio para ver a crise queimar mais rápido. Tudo devidamente secundado por diferentes vozes, que, no debate público, bateram palma para o fogaréu. Dão-se todos o luxo de ignorar que a crise suspendeu temporariamente qualquer disputa política real e organizada, incluída aí a disputa em torno da política econômica, por exemplo.

Pouco importa se os atores são movidos pela sandice, por interesse próprio, ou pelas duas coisas. O fato é que não existe nenhuma força social e política em condições de fazer o rescaldo e dirigir a reconstrução depois do incêndio. Em uma situação como essa, a primeira atitude de quem legitimamente teme pelo futuro do país tem de ser a de manter a cabeça fria. Exige que se distinga na confusão o que é essencial e o que é acessório. Exige agir segundo o imperativo de fazer todos os esforços para preservar o essencial.

A causa maior da desorganização atual é a Operação Lava-Jato. O efeito manada provocado pelo pânico de ser alcançado pela operação desfez partidos, bancadas e grupos. Impera o salve-se quem puder, especialmente na forma de movimentos de autodefesa contra os braços da Justiça. Ao mesmo tempo, o que causa a desordem é também uma das mais importantes conquistas da redemocratização.

Pela primeira vez, a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário tiveram liberdade de ação para atingir a cúpula do Legislativo e do Executivo. Tudo isso tem muito que ver com Junho de 2013 e com a fragilidade do segundo governo Dilma. Mas o fato é que, pela primeira vez, os famosos três Poderes se encontraram, face a face, na mesma praça, em igualdade efetiva de condições para negociar seu legítimo espaço de atuação constitucional.

A crise não cansa de produzir paradoxos. A causa da desorganização política é também o mais importante desenvolvimento a ser preservado. O que pode servir de plataforma para um aprofundamento da democracia funciona hoje como desestabilizador do sistema político. Mas o paradoxo não deve impedir de ver o essencial: é imperativo resistir a qualquer proposta de acordo e arranjo que pretenda bloquear politicamente a Lava-Jato.

Uma consequência imediata desse limite absoluto: é imperativo lutar contra qualquer linha de ação que possa ter como resultado a posse do deputado Eduardo Cunha na Presidência da República. Isso acontecerá com o afastamento de Dilma Rousseff e de Michel Temer, seja com uma dupla renúncia, com a impugnação da chapa ou com o impeachment sucessivo de ambos. Em todos esses casos, o presidente da Câmara dos Deputados assume a Presidência da República por 90 dias, até a realização de novas eleições.

Se isso acontecer, o essencial estará em risco. Um deputado investigado em um esquema bilionário de corrupção não tem condições políticas de ocupar a Presidência da República. A mesma Presidência que, constitucionalmente, tem sob seu comando a Polícia Federal e o Ministério Público, que indica juízes de três graus diferentes de jurisdição. A mesma Presidência que tem sob seu comando o serviço de inteligência do país, que tem acesso direto a informações privilegiadas das mais diversas ordens.

Pode-se querer o impeachment de Dilma, pode-se desejar novas eleições. O que politicamente não se tem o direito de ignorar é que ações nessa direção podem resultar em regressão democrática gravíssima. Manter a cabeça fria em momento de crise significa também reconhecer que, quando se olha para o essencial, não se vê até hoje indício de que Dilma tenha tomado qualquer atitude que pudesse significar uma tentativa de bloquear a Lava-Jato. Pelo contrário, seu ato mais recente foi propor a recondução de Rodrigo Janot para o cargo de procurador-geral da República.

Quem sonha com um impedimento apenas de Dilma, com a posse de Temer na Presidência, está aceitando riscos que vão muito além da troca de uma situação de razoável garantia do bom prosseguimento da Lava-Jato por um cenário de incerteza. Nesse cenário, não só Eduardo Cunha andaria mais uma casa no jogo da linha sucessória, tornando-se o substituto imediato de Temer. Cunha e Temer pertencem ao mesmo partido, o PMDB. O eventual Presidente da República estaria colocado em uma situação de dependência ainda mais estreita em relação ao presidente da Câmara dos Deputados do que Dilma Rousseff.

A atuação de Eduardo Cunha não demonstra apreço pela institucionalidade quando esta contraria seus objetivos e interesses. Sua gestão na Câmara dos Deputados vem sendo marcada pelo autoritarismo e pelo arbítrio de medidas nunca antes tomadas por qualquer outro presidente. Rasgou o regimento da Casa ao dissolver a comissão responsável pela elaboração do projeto de reforma política e nomear relator de sua confiança para apresentar proposta de seu interesse diretamente em plenário. Ao ser derrotado na emenda do financiamento privado de campanhas, Cunha afrontou a Constituição ao recolocar o mesmo tema em votação no dia seguinte. Repetiu idêntica manobra no caso da votação da redução da maioridade penal. Sendo presidente da Câmara, nada fez para impedir que deputados utilizassem uma CPI para constranger no livre exercício de sua profissão a advogada cujo cliente citou o próprio Eduardo Cunha em sua delação premiada na Lava-Jato.

Esses são apenas alguns elementos mais recentes do preocupante histórico de atuação do político que pode ser colocado no cargo de Presidente da República, ou na posição de seu substituto imediato. É uma perspectiva sombria para um país que produziu a duras penas a sua ordem democrática. É um preço alto demais a pagar por perder a cabeça no meio do incêndio, por desprezar a distinção política básica entre o essencial e o acessório.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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