quarta-feira, 18 de abril de 2018

Cristiano Romero: Leis exigem compliance também de fornecedor

- Valor Econômico

Caso Siemens criou as bases do que hoje se chama de 'compliance'

Em 2006, Wagner Giovanini aspirava assumir o comando da diretoria de recursos humanos da Siemens no Brasil. Engenheiro eletricista formado na Escola Politécnica da USP, estava na empresa há mais de duas décadas e, naquela ocasião, achava que chegara a hora de fazer algo diferente em sua carreira na multinacional alemã. De fato, chegou, mas o destino tratou de desviar Giovanini da sonhada área de recursos humanos e encaminhá-lo para o então desconhecido mundo do "compliance", encardida palavra inglesa que define conformidade, integridade, isto é, a necessidade de empresas estatais e públicas de cumprir padrões éticos e legais para prevenir a corrupção.

A gigante alemã foi protagonista, no início deste século, de um mega-escândalo de corrupção, envolvendo o pagamento de propinas a agentes públicos em dezenas de países, inclusive, na Alemanha. Os casos vinham de longe, desde a década de 1990. Em 1999, a Alemanha assinou convenção internacional, patrocinada pela OCDE, que trata do combate ao pagamento de propinas a autoridades no exterior. Isso não impediu que, na década seguinte, a Siemens pagasse suborno a agentes públicos de dezenas de países.

A inovação no combate a esse tipo de crime foi americana. Em 1977, ainda na esteira dos desmandos ocorridos na gestão Nixon (1969-1974), o Congresso dos Estados Unidos aprovou a FCPA - "Foreign Corrupt Practices Act" (lei anticorrupção no exterior) -, um dos mais importantes marcos legais de combate à corrupção já criados no mundo. Basicamente, o que a FCPA diz é o seguinte: a empresa que corromper um funcionário público numa nação estrangeira estará sujeita às leis americanas, isto é, terá que responder por seus atos nas cortes dos EUA.

Essa legislação foi crucial para começar a inibir a ação fraudulenta de companhias americanas no exterior. Na ausência de um dispositivo legal como esse, as multinacionais apostavam na fraqueza institucional de dezenas de países para corromper autoridades locais em troca de contratos que as beneficiassem irregularmente. Com a vigência da FCPA, bastava surgir denúncia de irregularidade em algum país para as autoridades americanas iniciarem investigações.

Nas décadas seguintes à aprovação daquela lei, os EUA usaram sua influência na OCDE, associação que reúne não só as nações mais ricas do planeta, mas também as de melhores práticas, para forçar outros governos a fazerem o mesmo. Estava em jogo, evidentemente, a competitividade de empresas americanas na disputa por contratos de serviço e fornecimento de bens em vários mercados - quem paga propina tem, obviamente, vantagem sobre seus concorrentes.

A grande Alemanha, quarta maior economia do mundo, líder incontestável da União Europeia, de quem não se esperava tolerância alguma com práticas de corrupção, levou 22 anos para aderir à convenção antipropina da OCDE, apenas um ano na frente do Brasil, país apontado como um dos mais lenientes no combate à corrupção. Notícias e rumores sobre as malfeitorias da Siemens começaram a pipocar no ano 2000, em casos de propina paga a autoridades de duas nações igualmente apontadas como insuspeitas no quesito boa-conduta: Áustria e Suíça.

O azar da Siemens é que a lei americana anticorrupção se estende a todas as empresas com ações nas bolsas dos EUA, o que inclui subsidiárias de companhias estrangeiras, "joint ventures", seus diretores, administradores, empregados e representantes, todos sujeitos às penalidades previstas na FCPA. Os procuradores alemães começaram a cuidar do caso apenas em 2005 e, um ano depois, foi a vez de as autoridades americanas se envolverem - motivo: ações da Siemens são negociadas na Nyse, a bolsa de Nova York. A brasileira Braskem foi enquadrada nessa categoria - junto com a holding Odebrecht, declarou-se culpada e, por essa razão, já começou a pagar multa de US$ 2,6 bilhões aos governos dos EUA, Brasil e Suíça.

O escândalo da Siemens acabou levando Wagner Giovanini, em 2006, a Munique, onde fica a sede da companhia, para fazer treinamento intensivo na área de "compliance". Àquela altura, ninguém, muito menos os alemães da Siemens, sabiam do que se tratava. Mas algo precisava ser feito e rapidamente porque a maior empresa de engenharia da Europa, por causa dos casos de corrupção, corria o risco de quebrar. Tudo era sigiloso e Giovanini só sabia que, quando retornasse ao Brasil, por causa do posto que assumiu, não responderia mais ao presidente da subsidiária. "Naquele momento, achei que não seria mais convidado para os churrascos da firma", diz ele.

Nos oito anos seguintes, Giovanini implantou o "compliance" da Siemens, possivelmente, o primeiro do país. Os mecanismos de integridade envolvem tanto a conduta dos empregados em casos de assédio moral e sexual e racismo, por exemplo, quanto a observância das leis que regem as relações entre empresas privadas e o setor público. Tudo foi feito a partir do nada.

Em 2011, Giovanini suspeitou de um funcionário que enviou e-mail a representantes de várias concorrentes da Siemens. A mensagem tratava da promoção de um churrasco. A equipe de "compliance" investigou a conduta daquele empregado e concluiu que o grupo reunia pessoas de diferentes empresas porque, na verdade, elas criaram cartel para fraudar a concorrência na compra de equipamentos e serviços do metrô de São Paulo.

A Siemens foi a Brasília e denunciou a si própria no Cade. Este deu seis meses para que a empresa trouxesse mais informações porque considerou insatisfatórios os indícios. Depois de árdua investigação, Giovanini e sua equipe voltaram ao tribunal no prazo estipulado com mais informação. O Cade tornou público o caso, revelando os nomes de quase duas dezenas de companhias supostamente integrantes do cartel do metrô.

Há três anos, Giovanini deixou a Siemens e fundou a consultoria Compliance Total. Recentemente, reforçou sua equipe com um ex-colega da Siemens, Marcelo Gomes. Os dois chamam atenção para o desafio do momento nesse tema: as leis anticorrupção brasileiras, principalmente as aprovadas por Estados como Rio de Janeiro e Pernambuco, determinam que as regras de conformidade devam ser cumpridas também pelos fornecedores, do contrário, a empresa contratante é responsabilizada pelos malfeitos.

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