terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Rana Foroohar* - O ‘grande ajuste’ da economia com Biden

-Financial Times / Valor Econômico

Ventos contrários deflacionários para o trabalho estão diminuindo

“É hora de recompensar o trabalho duro na América - e não a riqueza” Esta declaração do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, talvez seja a expressão mais concisa dos planos de política econômica do novo governo. Biden quer aumentar o salário mínimo nacional, elevar os impostos das empresas e começar a fazer pender a balança de poder entre o trabalho e o capital.

A participação do trabalho na renda nacional - a soma do PIB pago aos trabalhadores em salários e benefícios - vem caindo nos EUA e em muitos outros países desenvolvidos desde os anos 80. A queda desde 2000 foi particularmente íngreme, levando a salários estagnados, aumento da desigualdade e uma perda do poder de compra do consumidor.

Mas de muitas maneiras este é um momento difícil para o governo Biden inverter essa situação. Com o desemprego ainda elevado por causa da pandemia, não há uma pressão natural de alta dos salários. E alguns economistas afirmam que intervir para aumentar o salário mínimo agora desencorajaria as contratações.

Além disso, muitas companhias que sobreviverem à pandemia tentarão reduzir seus custos substituindo trabalhadores por tecnologia. De fato, a automação é um dos principais fatores por trás do declínio de várias décadas da participação do trabalho no PIB, segundo um estudo feito em 2019 pelo McKinsey Global Institute.

No entanto, há três grandes motivos por que podemos ainda estar em um importante ponto de virada na linha divisória entre o trabalho e o capital nos EUA.

O primeiro é que o governo Biden acaba de invocar a Lei de Proteção de Defesa (Defense Production Act) para forçar o setor privado a acelerar a produção e a distribuição de vacinas. Isso criará imediatamente mais demanda por empregos - uma tendência que poderá continuar depois da pandemia, uma vez que há clamores bipartidários pelo fortalecimento das cadeias de fornecimento domésticas para outros produtos farmacêuticos e para alimentos.

O segundo motivo é que há uma tendência de maior sindicalização, especialmente em setores de crescimento elevado como o de tecnologia. O impacto de algumas centenas de funcionários do Google na Califórnia formando um sindicato não deve ser exagerado - eles ainda são uma fração da força de trabalho de 100.000 pessoas no Estado -, mas é um marco cultural importante.

Ativistas sindicais estão tendo agora discussões parecidas com outras empresas do Vale do Silício. Funcionários da Amazon no Alabama votarão pela sindicalização em fevereiro. Ao mesmo tempo, organizações globais de trabalhadores, como a Confederação Sindical Internacional, estão pressionando os EUA e a União Europeia (UE) para que eles incluam cláusulas sobre os direitos dos trabalhadores em qualquer nova regulamentação das Big Techs.

Biden já está usando seus poderes como presidente para insistir que as empresas privadas com contratos com o governo federal usem mão de obra mais bem-remunerada - algo que os sindicatos estão elogiando.

E o poder da mão de obra organizada deverá crescer. Algumas autoridades acreditam que isso poderá ter um papel importante em ajudar os indivíduos - não só os trabalhadores, como também os consumidores - a readquirirem o valor de seus dados pessoais ao formarem “sindicatos de dados”. Esses sindicatos agiriam como supervisores independentes dos conjuntos de dados, concretizando seu valor comercial para seus membros. Embora fragmentos de dados de indivíduos não tenham grande valor, os conjuntos de dados têm - e uma divisão mais equitativa da riqueza intangível contida nesses dados poderia mudar o equilíbrio de poder entre as corporações e os indivíduos.

O terceiro motivo é que as tendências demográficas que colocaram os trabalhadores em desvantagem estão finalmente revertendo - e para o trabalho nos EUA isso poderá se mostrar o maior de todos os ventos favoráveis. Conforme Charles Goodhart e Manoj Pradham exploram em seu livro “The Great Demographic Reversal”, o equilíbrio do poder entre o trabalho e o capital diz respeito à oferta e demanda. Nas últimas quatro décadas, o ingresso pleno dos “baby boomers” na força de trabalho, incluindo uma proporção crescente de mulheres, mais a ascensão da China e de outros mercados emergentes, criou o maior choque positivo na oferta de mão de obra já visto. Diante disso, um enfraquecimento do trabalho em relação ao capital era inevitável.

Agora, todas essas tendências que pressionaram tanto os salários por 40 anos em grande parte se esvaziaram. As taxas de nascimento estão caindo na maioria dos países. Mudanças geopolíticas e econômicas levaram algumas nações, como a China, a criar cadeias de fornecimento mais independentes. Os “baby boomers” estão envelhecendo. Tudo isso significa que os ventos contrários deflacionários para o trabalho estão pelo menos diminuindo.

E mais: uma população em envelhecimento fará da indústria dos cuidados com a saúde um grande criador líquido de empregos. Enquanto funções de diagnósticos remotos - a chamada “telemedicina” - podem ser transferidas para países onde os salários são mais baixos, como a Índia, a maioria das posições na área de cuidados com a saúde é de empregos de contato próximo, que não podem ser transferidos para fora. Não admira que seis de cada dez empregos que o Bureau of Labor Statistics dos EUA acredita que crescerão mais rapidamente na próxima década, estão nas áreas de enfermagem, terapias e serviços de saúde.

Esses empregos são parte do que o novo governo Biden chama de “economia do cuidado” - uma importante plataforma de campanha econômica. O presidente propôs reforçar não só os cuidados de saúde para os mais velhos, como também a assistência à infância para as famílias - outra tarefa que não pode ser terceirizada para fora do país. Ele sugeriu que os gastos poderiam ser pagos pela eliminação de lacunas tributárias nas transações imobiliárias.

É claro que o aumento dos custos com mão de obra afetaria os lucros corporativos. Mas nos países ricos - onde os gastos do consumidor representam a maior parte da economia -, as empresas também devem se beneficiar. Portanto, há muito que ganhar com o reequilíbrio do poder entre o trabalho e o capital. (Tradução de Mário Zamarian)

*Rana Foroohar é editora especial do Financial Times em Nova York.

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