Importante
entender as entrelinhas. Não vai ser fácil o diálogo entre os dois governos
A
carta do presidente Bolsonaro enviada a Joe Biden por ocasião da posse como
presidente dos EUA, na forma, parecia ter sido escrita pelo velho Itamaraty ao
descrever a relação entre os dois países. Os comentários sobre os valores
compartilhados, as coincidências e os avanços recentes refletem as posições do
atual Itamaraty durante o governo Trump e estão longe de poder ser associadas ao
governo Biden, a menos que o texto indique uma bem-vinda correção de rumos na
política externa brasileira… Importante é entender o que está nas entrelinhas
da correspondência presidencial.
Uma primeira observação esclarecedora diz respeito à referência de que o atual governo “corrigiu os equívocos de governos brasileiros anteriores, que afastaram o Brasil dos EUA, contrariando o sentimento de nossa população e os nossos interesses comuns”. Como embaixador em Washington nos governos FHC e Lula (1999-2004), devo dizer que recebi diretamente dos dois presidentes instruções precisas para manter e ampliar as relações bilaterais, o que foi feito com resultados muito concretos para o Brasil durante os cinco anos em que lá permaneci. O posterior predomínio de considerações partidárias a partir de certo momento no governo Lula e no governo Dilma realmente afetou o relacionamento entre os dois países, como tive ocasião de prever e registrar em meu relatório final de gestão. A normalidade e o tratamento construtivo na relação entre os dois países foram retomados em seguida, com o governo Michel Temer.
A
afirmativa de que “os empresários de nossos dois países têm interesse em um
abrangente acordo de livre-comércio” exagera a vontade empresarial quanto a
esse acordo amplo (como se vê pela relutância em avançar as negociações com a
Coreia do Sul em decorrência da baixa competitividade brasileira), bem assim
quanto à disposição do governo de Washington, que não tem nem mandato do
Congresso, nem interesse em abrir negociações com o Brasil.
Nas
organizações econômicas internacionais, a carta diz que “o Brasil está pronto
para continuar cooperando com os EUA para a reforma da governança
internacional. Isso se aplica, por exemplo, à OMC, onde queremos destravar as
negociações e evitar as distorções de economias que não seguem as regras de
mercado”. Essa ação proposta por Trump, e que deverá ser mantida por Biden,
visa a atingir a China, não considerada pelos EUA como economia de mercado.
Apoiada pelo Brasil até aqui, com base na coincidência com as políticas de
Trump, vai continuar agora à luz da dependência do suprimento de vacinas e
insumos chineses para combater a pandemia? O governo brasileiro vai mudar sua
percepção negativa sobre o multilateralismo e seus efeitos maléficos sobre as
nações e passar a apoiar a nova linha do governo Biden?
Resta
saber se a afirmação de que “necessitamos também continuar lado a lado
enfrentando as graves ameaças com que hoje se deparam a democracia e a
liberdade em todo o mundo e que se tornam mais prementes no mundo pós-covid”
será suficiente para justificar, apesar de tudo, convite ao Brasil para
participar da grande conferência sobre democracia que Biden convocará neste
ano.
O
aspecto mais importante da correspondência se refere à “disposição a continuar
nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio
ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental,
recém-inaugurado”. Em relação ao Acordo de Paris, “nota que o Brasil demonstrou
seu compromisso com a apresentação de suas novas metas nacionais” e que, “para
o êxito do combate à mudança do clima, será fundamental aprofundar o diálogo e
aumentar a cooperação na área energética, visto ter o Brasil sido escolhido
país líder para o diálogo de alto nível da ONU sobre Transição Energética”. A
relevância desse trecho reside no fato de o Brasil ter dado o roteiro às
demandas do governo Biden para que sejam apresentados resultados concretos na
preservação da Amazônia (combate ao desmatamento, queimadas, garimpo ilegal e
proteção das comunidade indígenas), conforme previsto pelo recém-firmado
Diálogo Ambiental; para cobranças no aprofundamento das metas nacionais sobre
redução de emissão de gases de efeito estufa, pois, contrariando o compromisso
de 2015, ao invés de ampliar as metas, o governo promete emitir mais CO2 até
2030 e as condicionou a recursos externos, o que acarretou a exclusão do Brasil
da Cúpula de Ambição Climática sobre mudança de clima; ao aceitar participar do
Diálogo sobre Transição Energética, o Brasil será cobrado a apresentar
propostas ambiciosas em políticas climáticas
O
Congresso americano, com o novo governo, começou a rever o sistema geral de
preferências para países em desenvolvimento, em que se prevê a exclusão de
países que não implementarem políticas relacionadas às leis ambientais
nacionais ou compromissos internacionais. Caso o Brasil seja excluído, empresas
nacionais deixarão de exportar com tarifa zero mais de US$ 2,2 bilhões. Será
mantida a decisão de o Brasil acompanhar os EUA e aprovar os princípios da
política de rede limpa (clean
network) para excluir empresas chinesas da concorrência para a
instalação da plataforma 5G?
Não vai ser fácil o diálogo entre os dois governos.
*Presidente do IRICE
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