Governo
trabalha para que a peste permaneça
O
fenômeno reacionário que Bolsonaro encarna precisa de imprevisibilidade para
prosperar. Nada melhor do que uma pandemia artificialmente prolongada. O
governo trabalha para que a peste permaneça. Isto é verificável.
Por
exemplo: o caso do consórcio Covax, de abril de 2020. O Brasil tinha a opção de
adquirir doses para cobrir até 50% de sua gente. Optaria, contudo, pela cota
mínima — 10% de alcance. A justificativa foi que montara estratégia dedicada a
acordos bilaterais, com os quais teria melhores condições para preço e
transferência de tecnologia. Ok.
O mundo real, entretanto, impôs-se. E chegamos a 2021 com apenas uma parceria bilateral firmada — para a vacina de Oxford. Só em 22 de janeiro as primeiras duas milhões de doses decorrentes desse contrato pousaram no país. Volume modesto fabricado na Índia, pelo qual se pagou duas vezes mais que membros da União Europeia pelo mesmo imunizante. Um acordo bilateral que — até aqui — custou caro e entregou pouco. E que não pôde ainda honrar a parte do pacto relativa à transferência de tecnologia; impossibilidade prática derivada da inexistência de insumos para o trabalho da Fiocruz.
Estamos
no fim da fila de vacinação por ação deliberada do governo; por gestão do
presidente. Não temos vacinas a contento hoje, nem sequer contratos que
projetem no futuro a cobertura vacinal da população, porque Bolsonaro não quis.
Pazuello,
cavalo do presidente, não camufla a instrumentalização da incompetência. “Em
janeiro, começo de fevereiro, vai ser uma avalanche de laboratórios
apresentando propostas”, declarou no último dia 21. Que tal? Este é o cultor do
atraso cujo ministério receitou cloroquina até para bebês. Aquele que, já
sabedor da escassez de oxigênio em Manaus, visitou a cidade apregoando
feitiçaria a título de tratamento preventivo. Um militar, general da ativa, que
preferiu propagandear uma modalidade de prevenção que garantiria a propagação
da peste. Este é o cultor do atraso que insiste na mentira mercadológica de que
o Brasil será assediado por ofertas de vacinas; algo que não ocorreu nem sequer
aos EUA.
O
governo opera para que o país não apenas não tenha carga de vacinas suficiente
para imunizar os brasileiros, como só tenha sua cota de mixaria o mais tarde
possível. A sustentação do estado de calamidade informal — a preservação da
pandemia como solo competitivo — forja dificuldades que atraem as respostas
populistas. A ver o auxílio emergencial. Deixou-se que acabasse, mesmo com o
vírus recrudescente e o acirramento da miséria. Sob pressão que ele próprio
induz, Bolsonaro fará a derrama de dinheiros, sem planejamento, sem revisão de
benefícios ineficazes, sem o mais mínimo estudo para flexibilizar o teto de
gastos. Em vez de um debate para reformá-lo à luz da realidade, o improviso
voluntarioso que o aterrará.
O
improviso voluntarioso — semeador de demoras e gerador de urgências e
oportunidades — com vista a 2022. A propósito, o caso da importação da vacina
de Oxford desde a Índia merece reconstituição. Em novembro de 2020, em reunião
com o chanceler indiano, Ernesto Araújo, mesmo tendo o combate à doença na
agenda, e ciente de que falava com um país grande produtor de imunizantes, não
tocou no assunto. Preferiu criticar o governador de São Paulo, por considerar eleitoreira
a atividade daquele sem cujo empenho ainda não haveria brasileiro vacinado.
Em
13 de janeiro último, porém, o governo anunciou o envio de um avião à Índia
para buscar as doses. A meta era fazer Bolsonaro vacinar antes de João Doria.
Não daria certo. (Como certo não dará um programa de imunização que dependa de
só dois fabricantes; tudo o que ora temos: AstraZeneca/Fiocruz e
Sinovac/Butantan, incapazes de oferecer o que se demanda.) Armou-se um avião
publicitário pronto a decolar para recolher um imunizante indisponível. O
Brasil passaria vergonha ministrada pela Índia, então com outras prioridades.
(No mundo real, antes viriam as necessidades do vizinho Butão.) E diga-se que
fora o próprio governo a divulgar a fantasia de que teríamos a primazia. As
doses só chegaram quase dez dias depois.
O
episódio com a Pfizer não deixa dúvida sobre a existência de um plano nacional
de sustentação da pandemia. Data de setembro de 2020, a carta do CEO do
laboratório a Bolsonaro. A missiva, nunca respondida, pedia ao presidente que
fechasse logo um acordo com a farmacêutica, conforme já haviam feito EUA, União
Europeia, Reino Unido, Canadá e Japão. A demanda seria grande — e poderíamos
ficar para trás. Ficamos. Escolha do Brasil. O governo criou empecilhos e tentou
desacreditar a vacina. E todas as suas manifestações posteriores sobre por que
assim procedera, inclusive em nota oficial, configuram provas em que se
confessa um crime.
Bolsonaro
não é somente um mentiroso; o maior influenciador antivacinação do mundo. É o
líder de um governo que optou por não enfrentar o coronavírus. É o responsável
— agente direto — pelo atraso do Brasil em vacinar a população; e nisto vai
colecionando delitos. Crimes comuns; não somente os de responsabilidade.
Bolsonaro tem lugar no Código Penal. Ocorre que, de novo, o mundo real se impõe
— e nem sempre para prejudicá-lo. Afinal, tem também Augusto Aras e — cada vez
mais forte para presidir a Câmara — Arthur Lira.
Será difícil, sobretudo para os pobres.
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