O
liberalismo econômico e a social-democracia vivem um mau momento
Passeando
pela minha estante me chamaram a atenção os títulos de vários livros que li (ou
folheei...) recentemente: "como a democracia chega ao fim", "como
as democracias morrem", "crises da democracia", "por
que o liberalismo fracassou?", "o liberalismo em retirada",
"o futuro do capitalismo", "a batalha dos poderes" e
"o Brasil dobrou à direita".
Não
sou tão pessimista, mas é inegável que o liberalismo econômico e a
social-democracia vivem um mau momento. Lideranças populistas e autoritárias
consolidam-se mundo afora. A China, que parecia caminhar em direção a alguma
abertura, deu
um cavalo de pau com Xi Jinping. Nesse cenário, a derrota de Trump é uma
luz no fim do túnel.
Seria absurdo pensar que a democracia vai ter que se reinventar? As pressões por mudança vêm de várias frentes: a crescente desigualdade, a falta de mobilidade social, a incerteza quanto ao emprego, ameaçado pela tecnologia, as dinâmicas das redes sociais, as questões existenciais da mudança climática e da biodiversidade, as tensões do nacionalismo e os riscos do populismo. Há pressa!
Dei
costas para a minha estante, desisti da lista acima e peguei na cabeceira uma
obra das que mais gostei nos últimos tempos: a biografia do irlandês
conservador Edmund Burke, membro do parlamento britânico, publicada em 2013
pelo também parlamentar Jesse Norman. Muito raramente faço anotações nos
livros, mas marquei esse, talvez por tocar em questões muito em voga: a ordem
social, os partidos políticos, as facções, os princípios da democracia e as
possíveis implicações para os nossos tempos.
Correndo
o risco de dar uma de Procusto, o personagem da mitologia que mutilava corpos
para que se encaixassem em sua cama de pedra, faço aqui algumas pontes entre
temas explorados no livro por Burke e Norman e a realidade brasileira.
Inicialmente,
cabe uma breve reflexão sobre a ordem social, entendida como uma herança que
passa de geração a geração, algo a preservar e a aperfeiçoar, gradualmente. No
caso da Grã-Bretanha, aspectos legais e culturais se confundem, num
"contrato informal", sem cláusula de escape, entre as gerações
passadas, presente e futuras. Essa noção de permanência faz parte da essência
do conservadorismo de Burke, e não se confunde com conservadorismo de costumes
ou falta de solidariedade social.
No
caso do Brasil, um novo "contrato" foi formalmente codificado em
1988, quando
da promulgação da nova e muito detalhada Constituição.
Desde
então os gastos públicos têm crescido quase que continuamente. A partir desta
constatação, muitos concluem que o Brasil é inadministrável ou inviável. Mas
cabe algum cuidado aqui. Desde sua promulgação, a constituição foi emendada 108
vezes (versus 27 no caso da americana, promulgada em 1789, sendo que 17 emendas
ocorreram após a ratificação da Declaração de Direitos em 1791). Logo, não
parece razoável culpar a Constituição por nossos problemas quando o Congresso
pode com relativa facilidade aprovar emendas (o que não ocorre nos Estados Unidos).
Uma
característica básica do caso brasileiro parece ser que há mais a aprimorar do
que a conservar. Um exame do quadro orçamentário do Brasil exemplifica a
gravidade do desafio. Por que o Orçamento?
Porque é lá que desejos e carências são transformados em prioridades.
A
despeito dos gastos públicos terem aumentado cerca de 10% do PIB desde 1988, os
investimentos públicos caíram de um pico de 5% para 1% do PIB e os gastos com
saúde limitam-se a apenas 4% do PIB (muito pouco para um sistema que se
pretende gratuito e universal). Sem falar no desequilíbrio fiscal que se
observa desde o descalabro de 2014-2015. A falta de prioridades sugere que o
problema não é apenas econômico —é político também.
Tendo
um pano de fundo como esse, o Brasil precisa repensar alguns aspectos de sua
vida orçamentária, um elemento crucial de qualquer democracia. A despeito de
avanços institucionais importantes nas últimas três décadas, o sistema vem
deixando a desejar, sobretudo a partir de 2014. A trágica
farsa do Orçamento que hoje vivemos não é novidade.
Cabe,
portanto, a pergunta mais geral de Burke: como conseguir que a política vá além
dos interesses pequenos de todo tipo? A soma destes interesses raramente
entrega como resultado o interesse público, o bem comum. Parte relevante das
respostas a essa indagação viria, segundo Burke, do bom funcionamento dos
partidos "uma força moderadora e promotora de bom governo".
Em
tese. Num de seus primeiros escritos, Burke afirma: "no momento não temos
entre nós partidos propriamente ditos, apenas facções, sem princípio algum, um
bando fazendo intrigas em benefício próprio". Faz algum eco aqui. Com 24
partidos representados no Congresso, sem clareza programática e mesmo
ideológica, e nem um deles sequer com mais do que 10% dos assentos, os
horizontes se encurtam, os projetos se apequenam e o bem maior da nação fica em
segundo plano.
As
reformas políticas já aprovadas apontam na direção certa, mas há um longo
caminho pela frente. O equilíbrio entre interesses locais, regionais e federal
é complexo. O mesmo se pode dizer de interesses temáticos, hoje particularmente
presentes com as bancadas.
Não creio que o nosso sistema partidário seja a origem de todos os males. Mas, diante de desafios que só fazem crescer, as chances de sucesso parecem pequenas sem uma significativa melhoria em nossos mecanismos de governança.
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